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Saímos da fronteira norte de Kamigawa a uma ou duas semanas com as palavras do Shogun em nossas cabeças... ”Rumem norte e relatem o que encontrarem além da fronteira”, no momento, pareciam lindas palavras. Cumprir uma ordem do escolhido dos Deuses não era apenas um dever, mas um dever que qualquer um do Reino teria o prazer de realizar... grande erro... Grande Norte.
Após o nono ou décimo dia de viagem, encontramos um acampamento, provavelmente o posto mais próximo de toda a fronteira. Troncos de árvores com as pontas afiadas formavam uma paliçada por volta de toda a muralha, feita também do mesmo material. Com portões para o sul e para o norte, era vigiada por arqueiros que andavam pelos suportes construídos pelo lado interno da estrutura. Em uma torre alta, no centro da fortificação, outros dois vigiavam todo o território circundante. Além disso, víamos também mais três ou quatro construções que deveriam servir de dormitório e a casa do líder ou comandante do bando.
Em silêncio, fiz sinal ao grupo, enquanto Souta, o cartógrafo, media os ângulos das estrelas com suas bugigangas e anotava no mapa que carregava, e Jiro murmurava seus encantos sobre todos, nos tornando tão visíveis quanto a leve brisa que remexia a vegetação rasteira. Nos afastamos não mais do que um ou dois quilômetros do acampamento e seguimos viagem.
No décimo segundo dia, Ryota chamou minha atenção para o horizonte. Pelo caminho que tinhamos vindo, avistamos um grupo a cavalo rumando em nossa direção. “Mas co....”, a minha frase estancou interrompida no ar, enquanto eu olhava para o chão árido pelo qual viajávamos. Em meio a poeira e areia, havia pegadas, que por menores que fossem na imensidão das terras, serviam de sinalizador e alarme para os perseguidores. ”Idiotas...”, esbravejei com o grupo, “... não falei para tomarem cuidado com suas pegadas !? Agora vamos... suas vidas dependem de suas pernas”, olhei novamente para o horizonte. Sendo otimista, um ou dois dias de viagem a cavalo... correr apenas lhes retardaria algumas horas, mas era tudo o que podíamos fazer.
Corremos por um dia inteiro, parando apenas dez segundos a cada cinco horas. Na madrugada do dia seguinte, com as tochas se aproximando cada vez mais e, junto com elas, o medo e a morte, os quilômetros percorridos cobraram seu preço. Kaji foi o primeiro a cair, seguido de Souta, Jiro, Ryota e, por último, eu mesmo. Fechei os olhos e mal me lembro de ter adormecido... murmurei um ”Foi bom conhecê-los, rapazes...”, que mal saiu da boca.
Ouvi o trote dos cavalos, o idioma gutural e uivado das criaturas... abri um de meus olhos e avistei alguns gnolls e um ou outro hobgoblin. Amaldiçoei-os e amaldiçoei as circunstâncias... não seriam pário para um samurai se estivesse em melhores condições. Ri da bravata, como quem ria para a morte... ”Não... hoje não ?... ou talvez sim, Shinigami”. Vi também quando a noite tornou-se mais escura, escondendo as estrelas e tornando inútil a visão dos nossos perseguidores.
Um deles, que carregava Ryota até o cavalo mais próximo, grunhiu algo e, logo depois, ouviu-se um gemido abafado seguido de um baque seco, que inferi sendo o corpo do kamiko¹ indo ao chão. Ao redor, ouvi sons que me fizeram lembrar das alfaiatarias de Kamigawa, onde os mestres da seda a cortam com seus instrumentos. A única diferença era que os instrumentos deveriam ser armas e a seda... o pescoço das criaturas. Ouvi uma voz diferente, falando em um idioma tão diferente quanto... senti alguém me erguer e fui posto em um cavalo. Adormeci novamente...
Despertei em uma cama de palha improvisada... os olhos, ainda se acostumando a claridade do cômodo, rodearam o ambiente tentando reconhecer os vultos embaçados. Uma mulher se aproximou de mim, oferecendo uma tigela de uma substância pastosa verde escura e um copo de um líquido da mesma cor.
--- Coma... vai te fazer sentir melhor.
Me dei conta de que estava com muita fome... e talvez por isso, a comida pareceu mais gostosa. Indaguei a ela:
--- Onde estamos... e, quem é você?
--- Vocês estão em Kallistria... --- sua voz era doce e sedutora, mas ao mesmo firme e decidida --- ... eu sou Kallina.
--- O que... o que aconteceu ?
--- Alguns dos nossos estavam fazendo uma patrulha nas fronteiras da cidade e os avistaram.
--- Se não fosse a gente, vocês teriam virado jantar de gnoll, meu caro. --- um homem falou da porta. Cabelos negros como a noite e olhos claros, cujo azulado parecia dançar sobre a luz das velas, faziam sua pele clara ainda mais acentuada. Um sorriso convidativo e amigável era visível em seu rosto, enquanto se aproximava de Kallina, colocando a mão em seu ombro e deixando mostrar as enormes unhas escuras.
--- Como se eles não fossem virar jan...--- um terceiro homem saiu das sombras no canto do cômodo. Cabelos brancos, olhos amarelos, com uma pele mais clara que os outros companheiros e um ar de guerreiro e nobre. Trajava vestes leves de couro e suas mãos brincavam com uma faca de prata bem trabalhada. Perguntei-me se já estava lá desde quando acordei... mal prestei atenção em suas palavras, que foram interrompidas pela mulher.
--- CALADO, Gheth... --- lançou-lhe um olhar de repreensão que faria congelar o mais corajoso dos homens. Deixou transparecer um sorriso raivoso e o que me pareciam ser... presas. Congelei de pavor... engolindo seco.
Vampiros...
Sempre achei que não passassem de lendas. Por mais que existissem relatos de toda a sorte de monstros e criaturas no Extremo Norte, nunca havia ouvido falar dos Imortais. Reza a lenda que viviam de sangue, não possuiam imagem ao espelho, eram vulneráveis a luz do sol e só morriam com o coração atravessado por madeira. Engoli seco novamente e vasculhei o cômodo com os olhos em busca de algo que pudesse servir de arma. Minha ansiedade e medo deve ter sido notada pelos três Imortais, dado o que Kallina falou em seguida:
--- Seu coração disparou... se acalme. --- ela sorriu. Linda... --- Somos vampiros, mas não queremos o seu mal. Venha comigo... vamos dar uma volta. Consegue se levantar ?
Obedeci por medo. Me levou para fora do cômodo, um salão muito alto e amplo. Diversos vitrais multicoloridos e foscos que diminuiam a entrada de luz no local, mobiliado com algumas mesas, cadeiras e dezenas, ou melhor, centenas de estantes de livros, tomos e pergaminhos. Estimei algo como por volta de cem a duzentos mil manuscritos, conhecimento que faria qualquer estudioso de Eä delirar... o conhecimento da eternidade. Cruzamos todo o salão, em direção a duas enormes portas de carvalho negro que deviam pesar quatro ou cinco homens. Kallina empurrou-as sem grandes esforços, deixando a luz do sol invadir aquele santuário e me convidou a passar por elas.
Ao pé da montanha, Kallistria se estendia por quilômetros em raio, terminando em uma muralha de pedra tão alta quanto as maiores torres dos reinos ao sul. Casas de rocha negra eram agrupadas em quarteirões geometricamente planejados entrelaçados ruas pavimentadas com o mesmo material das construções. Espalhadas por elas, pilares de rocha mais clara com estátuas, representando os mais variados seres, vigiavam tudo estaticamente. Arquedutos e canais abasteciam toda a cidade com água que, por não avistar nenhum rio ou lago, supus vir de alguma fonte na montanha ou abaixo da terra. Vi também elfos, humanos, anões e outras raças que não reconheci, e indaguei à minha acompanhante:
--- Todos são... ?
--- Não, eles são Mortais. Ao total, somos 17 vampiros... todos os outros habitantes são de suas respectivas raças.
--- Mas o que fazem aqui ? --- perguntei e, por sua reação, pareceu ofender-se com a pergunta.
--- Muitos foram exilados dos reinos ao sul ... --- fez questão de pausar --- ... outros nasceram ao norte e conseguiram fugir da escravidão dos monstros. Mas a maioria nasceu aqui, bem como seus antepassados.
Ela parou de falar, observando um grupo de crianças que brincava a frente das escadarias da biblioteca.
--- Nós, vampiros, não somos aliados de nenhuma raça ao norte ou ao sul. Não nos interessamos pelas guerras e conflitos de ninguém, mas não temos piedade dos que entram em nosso território.
--- E eu e meu grupo ... ? --- perguntei, como se testasse a paciência vampírica.
--- Oferecemos abrigo e proteção a todos que precisam... --- terminou a frase sem realmente terminá-la. Como se a completasse, eu disse.
--- E em troca, os habitantes servem de alimento para vocês, certo ? --- passei a mão em meu pescoço.
--- Você não foi mordido... --- ela disse com o semblante triste, como se esperasse a minha reação --- Todos os que vivem aqui, o fazem porque querem. Se nos dão seu sangue... é por gratitude e respeito...
--- Entendo...
--- Você e seus companheiros estão livres para partir quando quiserem. Só peço que não digam a ninguém sobre nossa cidade... para a segurança de vocês. Tomarei as providências para que tenham cavalos até o entardecer. Peço também que não cheguem perto do acampamento gnoll, pois não estaremos por perto para salvar seus traseiros mortais. --- falou em um tom de zombaria, esboçando-me um sorriso.
--- Obrigado, Kallina... --- torci a cabeça para o lado, fechando os olhos --- ... obrigado, por tudo.
Senti seus dentes perfurando a pele e o sangue fluir. Fui tomado por um calor e logo depois por um prazer extremo. Minha visão turvou-se e minhas pernas fraquejaram... foi o sinal para que ela parasse. Lambeu a ferida e beijou-a, subindo para minha bochecha e então para minha boca.
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Meu pescoço ainda ardia pelo terceiro dia seguido. Seguiamos de volta a Kamigawa, para relatar os acontecimentos ao Shogun. Durante a viagem, mais rápida e mais tranquila pela presença dos cavalos, escrevia um relatório.
”... rumamos doze dias para norte, encontrando um acampamento gnoll. Fomos atacados, mas rechaçamos o ataque, roubando-lhes alguns cavalos....
Fora isso, mais nada a reportar.”
kamiko ¹ : aqueles nascidos em Kamigawa.
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