Graças ao sal, as feridas abertas não cessavam em doer nem mesmo durante os intervalos entre cada chicotada. Gritava mudo a cada nova ferimento e implorava para o término daquele espetáculo, fosse com o fim das contagens ou com sua morte... o que chegasse mais rápido.
Digo espetáculo, pois era assistido por toda a vila. Crianças, adultos e idosos, todos olhavam para o bruxo e em silêncio... três silêncios completamente diferentes. Um silêncio de ignorância dos mais jovens. Não sabiam o que acontecia ao certo, apenas tinham conhecimento de que seus pais haviam capturado um bruxo malvado... olhavam para o açoitado e imaginavam-se como cavaleiros de armaduras brilhantes punindo um inimigo. Um silêncio de orgulho e desprezo dos adultos perante o homem, como se tivessem protegido o vilarejo de um perigo e, agora, expurgassem tal atrocidade. E um silêncio que era reza, por parte dos mais velhos. Imploravam aos Deuses para nunca mais colocar um bruxo no caminho do vilarejo.
Retiraram seu corpo do palanque de madeira ainda semi-consciente... podia-se dizer que havia saído no lucro, onde muitos haviam sido punidos com a morte, ele apenas havia sofrido algumas dezenas de chibatas, cabelos arrancados e alguns ossos quebrados. Ou fora sorte, ou apenas era mais resistente. A fogueira foi acesa e o homem ardeu nas chamas. Os aldeões logo voltaram para suas casas e dormiram e sonharam até a manhã do outro dia, onde recolheram as cinzas do bruxo e a enviaram para alguma terra longínqua.
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Você acharia plausível se parasse a história por aqui, afinal, o passado está cheio de homens que foram à fogueira inocentemente, seja em comunidades bárbaras ou não... homens considerados bruxos, apenas por serem capazes de um dom que ninguém tem ou entende.
Estes... eu não me importo. Que ardam e morram...
Mas... e quando os aldeões e os bárbaros tem razão ? E quando realmente um bruxo vai a fogueira ?
Posso assegurar-lhes que as chamas não são o bastante... mas deixe-me continuar...
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Durante a madrugada, Eizi farejou o sangue de seu mestre, aproximou-se dos restos da fogueira ainda quente e carregou Essien para fora da vila, bem como o que sobrara de sua mochila, também incendiada. Totalmente coberto de cinzas, o bruxo acordou dois dias depois, levantou-se e, ignorando a dor que sentia, saboreou com prazer o gostinho de sangue em sua boca, resultado da magia que havia invocado para se proteger das chamas.
Essien era um taumaturgo, um mestre em uma arte milenar... a magia de sangue. Estava em uma daquelas jornadas por conhecimento a alguns anos... uma nobre aventura que mais havia estuprado mulheres e saqueado vilas do que aprendido algo. Era inteligente e sagaz. Versado nas muitas áreas do conhecimento, mas buscava algo que apenas a taumaturgia poderia lhe dar...
Um antigo conhecido havia lhe dito que outro mestre na magia de sangue estava pela região e, portanto, Essien seguiu ao encontro do homem, no intuito de compartilhar conhecimentos... MENTIRA... com a intenção de se apossar dos conhecimentos do homem e matá-lo. Não havia motivo para haver outros taumaturgos poderosos...
Os aldeões haviam dito que outro forasteiro havia passado pelo local a menos de uma lua rumando norte... agora tinha para onde seguir. Olhou seu reflexo em um rio que passava a alguns quilômetros da aldeia, ”Você está deplorável, meu caro Essien”. Pegou uma navalha dos restos de sua mala e nivelou os cabelos negros, deixando não mais do que um centímetro, o bastante para esconder suas cicatrizez. Limpou seu corpo das cinzas e, com alguns pedaços de pano chamuscado, improvisou uma bermuda... teria que roubar algumas roupas mais tarde. Fez sinal para Eizi e o lobo partiu pela planície em disparada. Retornou algumas horas mais tarde com um coelho ainda vivo entre os dentes. O taumaturgo estudou por um momento a criatura que esperneava assutada e, com a navalha, cortou os pontos certos para que o sangue fluísse rápido, enquanto murmurava um encanto. Bebeu da vida escarlate do animal e sentiu os ferimentos nas costas se fecharem, o osso da perna retornar ao normal. ”Novo em folha”, disse olhando para o reflexo manchado pelo sangue.
Rumou norte por cinco dias, quando encontrou uma aldeia maior que a primeira, com não mais do que 40 ou 50 construções, chutou 100 a 200 habitantes. Farejou o ar por um momento, como se sentisse o aroma de algo, esboçando um sorriso quase bobo, daqueles de criança quando ganham um presente. "Ele está aqui Eizi, consegue sentí-lo?”, afagou a cabeça do lobo, que soltou um uivo baixo de confirmação.
Esperaram anoitecer e adentraram na vila, olhos vermelhos de sangue mágico tornava a visão noturna de Essien tão boa quanto a de Eizi. Xingava os aldeões por terem ficado com suas armas, já imaginando como improvisaria em caso de combate... quem sabe não haveria necessidade. Quem sabe os dois apenas sentariam e conversariam sobre Eä, sobre as terras ao Sul, sobre sangue e sobre a taumaturgia. Quem sabe tomariam um bebida e dariam risadas... quem sabe tornariam-se grandes amigos.
”Pare de pensar asneiras...”, disse mentalmente, enquanto passavam pelas ruelas do lugar. Em um varal de uma casinha, afanou algumas roupas que lhe serviam. Um colete de couro, uma camisa e uma calça apertada. Ainda faltou-lhe as botas, que encontrou alguns metros depois, próximo da soleira de outra construção.
Aproximavam-se da praça da aldeia, uma área ampla rodeada das construções mais importantes do local --- uma taverna, uma igreja, um armazém e uma estalagem. Com um piso de pedras cinzas, não existia fonte ou mesmo um jardim no local, havia, no entanto, uma estátua do busto de um homem, possivelmente o fundador ou alguma figurona importante para os habitantes. Além disso, alguns bancos de pedra e um coreto pequenino denunciavam que a vila recebia artistas errantes de tempos em tempos. Os lampiões já haviam sido apagados e nenhuma luz era visível pelas janelas das casas... nenhuma viva alma estava presente, não fosse a figura que observava sentada em cima de um telhado próximo.
--- Procurando por mim ? --- levantou-se, revelando uma figura alta e esguia feminina delineada pelo luar.
--- Ora ora... vejo que minha noite acabou de ficar melhor. Não esperava por uma dama... --- Essein disse, sorrindo e a mulher retribuiu com sorrindo.
--- Já ouvi falar de você... Essien, o taumaturgo do Sul...
--- ... e do Leste e do Oeste e do Norte, minha cara --- interrompeu-a, fazendo um gesto com as mãos como se abrangesse os 7 ventos. --- Todos os tuamaturgos que já conheci, como posso dizer... fazem parte de mim.
--- Sou a única que ainda não caiu? --- ela saltou do telhado, ficando a não mais do que quatro metros do taumaturgo. Possuia tez muito clara, lábios carnudos, cabelos negros e olhos amarelos versados na arte de intimidar e manipular. Trajava uma capa, tão preta quanto seus cabelos, que deixava mostrar apenas parte de seu corpo, um corselete algum tom mais claro que a capa e, apesar do frio da noite, uma peça bem curta abaixo da cintura, que exibia as grossas coxas, as canelas, chegando até as botas de viagem. Por último, para combinar com o manto e as botas, calçava um par de luvas escuras e um broche vermelho próximo ao ombro direito.
--- Nah... provavelmente não --- disse, dando de ombros. --- Últimamente, a taumaturgia está se tornando uma arte banalizada... mais e mais “novos-sangues” aprendendo o ofício. Mais e mais besteiras acontecendo...
--- E o qual o seu papel nisso? --- indagou em tom de brincadeira.
--- Digamos que eu sou o controle de qualidade --- zombou, abrindo um sorriso, enquanto mexia com um dos anéis em seu dedo --- prefiro não ficar quieto enquanto vejo a decadência da nossa arte.
--- Hum... o que você quer comigo ? --- perguntou já sabendo a resposta.
--- Hoje é a noite de seu teste, mon amour--- terminou a frase correndo em direção da mulher.
Com o anel, um cilindro circular com lâminas por toda volta, fez um corte em seu dedo. Murmurou palavras em um idioma conhecido pelos dois e o sangue fluiu rápido pelo polegar, tomando a forma de uma lâmina escarlate que fincou em cheio no peito da garota. Eizi latiu desconfiado, enquanto a inimiga desfazia-se um gás perfumado.
--- Uma ilusão... estou impressionado. Há muito tempo procuro por alguém que valha o esforço... parece que finalmente encontrei --- virou-se, para encontrá-la sentada no busto da estátua --- A quem devo a honra?
--- S’hares --- ela parecia remexer algo em sua boca, como se mastigasse algo --- Lembre-se do nome.
--- Pode dei... --- Essein é interrompido quando a garota parece cuspir o que mascava. Uma pequena esfera vermelha que foi projetada em alta velocidade quase o acertou no peito, não fosse seus reflexos e a magia que melhorava sua visão. A esfera seguiu seu curso, acertou uma das construções e desfez-se em uma mancha de sangue na parede--- ... Eizi, para longe... você pagará, desgraçada !!!
Investiu contra ela, brandindo sua lâmina de sangue, um pouco maior do que uma espada longa. Fez um corte horizontal, atingindo apenas a testa da estátua, e então outro e outro corte, mas S’hares continuava desviando, ainda em cima da estátua. Cortou testa, boca, pescoço e peito, finalizando com um corte vertical que dividiu cada pedaço anterior em dois. A taumaturga com um salto, apoiou-se em suas costas e após uma pirueta aterrisou no telhado do coreto central.
Essien sorriu, enquanto uma gota de suor escorria de sua testa. Passou a outra mão pela lâmina rubra, cortanto o polegar e transmutando sangue em uma nova lâmina. Impulsionou-se e saltou em direção da inimiga, usando o peso do corpo para fincar o metal nos ombros de S’hares, fazendo um estalo alto das clavículas se quebrando e, devido ao peso, destroçando algumas telhas abaixo de seus pés. Desfez uma das lâminas e, segurando o ombro da garota, fincou o aço rubro em seu abdómen, fazendo com que cuspisse um pouco de sangue. Aproximou do rosto da garota e lambeu o filete vermelho que descia pelo queixo.
--- Sabe, antes de chegar aqui. Pensei que talvez pudéssemos sentar, conversar e beber... ao invés de nos matarmos logo de início... --- rodou a lâmina na barriga da garota, que soltou um gemido agoniado ---... nem que isso nos levasse a uma matança mais tarde. Mas, sabe, seria um início diferente do qual estou acostumado --- deu de ombros, fazendo uma expressão desinteressada.
--- Filho da puta... --- cuspiu vermelho no rosto de Essien.
--- Quanta doçura... agora me diga --- fez uma pausa, apreciando a dor da taumaturga e limpando a face --- o que sabe sobre a imortalidade?
--- Nada... nada que possa... arrancar de mim !
--- Bem... eu posso arrancar-lhe a cabeça, que tal ? --- indagou, após alguns segundos, como se já esperasse a resposta. Mas foi surpreendido por um sorriso vindo do outro lado. Um sorriso de zombaria e felicidade.
As mãos da garota se ergueram, tocando o antebraço de Essien, bem onde a lâmina escarlate terminava. Fez força, puxando o corpo para longe e o braço do homem na direção oposta, até que o sangue desprendeu-se da mão e a lâmina se desfez em líquido, dando espaço para um buraco que atravessava o corpo feminino. Delicadamente ela afastou a mão que segurava seu ombro e deu alguns passos para trás. Os ombros achatados voltaram a forma original e a ferida no abdómen cicatrizou-se, enquanto ela murmurava um encanto.
--- Por que quer trapacear a morte, Essien ? --- questionou, deliciando-se da surpresa e espanto do homem. O luar tornava suas feições ainda mais provocantes e sensuais.
--- Hunf.... --- Essien parou, sem saber o que dizer. Não apenas espantado com o poder da mulher, mas por perceber que não havia um real motivo por querer a imortalidade. A desejava por ser o topo da excelência taumaturga. Quem a dominasse seria o melhor... o mais poderoso. E, se havia algo como “poder demais”, ele ainda não havia descoberto. --- ... Sei lá.
--- És um tolo e sem objetivo... e morrerás por isso ! --- gritou investindo contra ele.
Acertou-lhe um golpe acima do abdómen, que o fez soltar todo o ar dos pulmões e curvar-se, seguindo de uma sequência de joelhadas, cotoveladas e chutes nas mais diversas partes do corpo. Ele defendeu-se como podia, mas não foi páreo para a rapidez da garota. Após um chute na virilha, ela o agarrou e arremessou para o chão da praça, pulando do coreto e caindo com os dois pés em seu tórax. Ouviu-se um estalo de algumas costelas se quebrando.
Ainda em cima de Essien, a garota segurou o colarinho de sua camisa e deu-lhe alguns socos até que sua boca sangrasse. Pegou uma pequena faca que pousava presa à bota e cortou-lhe camisa e peito, passando os dedos no sangue do ferimento. Soltou uma gargalhada doentia em meio às palavras arcanas e uma manopla rubra tomou forma sobre o braço feminino.
Quebrou-lhe o nariz com mais um murro e, agarrada a veste de Essien, o arrastou pelo chão de pedra por alguns metros, arremesando-o na parede a taverna, do outro lado da praça. Caminhou calmamente até os escombros, enquanto o taumaturgo, ainda nauseado, tentava recobrar os sentidos. S’hares agaixou-se ao seu lado, murmurando:
--- Algum dia... alguém irá me superar. Mas não será hoje e não será você, Essien...
Não faltou vontade para levantar-se e ir atrás da mulher, mas sua força havia se esvaído após os ataques que recebera. Ficou apenas observando, enquanto a figura feminina desaparecia de seu campo de visão... até que seus olhos fecharam e ele desmaiou.
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Acordou com o crepitar de uma fogueira próxima e Eizi ao seu lado. Levantou muito rápido e sentiu as costelas repuxarem, soltou um xingamento de dor.
--- Até que enfim acordou ! --- um homem levantou-se próximo a fogueira. Travaja um tipo de sobretudo de couro, cinza claro, de mangas cortadas, uma calça azulada e botas de cano alto bastante sujas, sinal de alguém acostumado a andar por trilhas de terra. Cabelos longos azulados, feições retas e duras e um olhar quase lupino. --- Você teve sorte de eu encontrar seu lobo pela estrada... ele te arrastava para fora do vilarejo. Qual o seu nome ?
--- Essien... --- o taumaturgo disse, olhando para o curativo que o homem havia feito. Levantou-se como pode, indo se sentar próximo a fogueira. --- ... e você ?
--- Miwalk... o que fazias no vilarejo ? E por que estava todo quebrado ?
--- Tive um desentendimento com alguns aldeões... --- mentiu.
--- Sabe, você é um péssimo mentiroso... você estava moribundo quando te encontrei. --- disse, rindo da mentira do taumaturgo.
--- Sabe como dizem... o que não nos mata, nos fortalece --- desconversou, sorrindo --- Tem algo para comer ?
O homem entregou-lhe um pedaço de carne assada e passaram a noite conversando. Miwalk era um geomante, um tipo de elementalista que retira poder das formas presentes da natureza, como rios, montanhas, florestas ou planícies. Além disso, era um estudioso da astrologia e sabia bastante sobre o céu e os astros. Carregava uma bolsa pequena, de não mais do que alguns palmos, que a chamou de “biblioteca”... era mágica e seu interior era muito mais espaçoso do que uma bolsa normal. Retirou algunas dezenas de livros, resumindo-os e comentando-os oralmente. Essien se interessou por um em particular, um livro de umas 100 a 200 páginas, capa de couro negro e com inscrições quase ilegíveis na fronte.
--- É um livro de lendas infantis... conta sobre alguns Deuses de Eä e o Cosmo. --- Miwalk disse, enquanto o taumaturgo folheava o objeto. Deteve-se em um capítulo em especial, “Um Deus de Barganha”, uma cantiga que falava de uma entidade negociadora.
--- Posso ficar com ele ?
--- Sem problemas, não me fará falta. --- disse guardando os livros de volta na bolsa mágica.
Conversaram por mais algumas horas e foram dormir. No dia seguinte, Essien despediu-se de seu amigo e seguiu seu rumo, junto com Eizi.
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”Um Deus de Barganha
Mercador, barganhador,
Matreiro latoeiro,
Ele não quer o seu dinheiro.
Gosta mesmo é da sua dor.
De fogo e sangue você vai precisar,
Se ao Deus das Trocas quiser chamar.
Mas, se acaso ele surgir,
Não haverá como fugir.
Um pedido você terá,
Mas, em troca, muito terá que dar.”
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--- Fogo e sangue, é? --- Essien repetiu, ateando fogo a uma bacia cheia do líquido vermelho. Gritou --- Deus das Trocas ! Apareça !
Estava ao sopé de uma montanha, a algumas centenas de quilômetros da fronteira com as terras do Sul. As poucas árvores da região pareceram se agitar mesmo sem nenhum vento ou brisa.
A figura esguía e esbelta surgiu sentado em uma rocha. Olhos frios e calculistas que analisaram Essein de cima a baixo. Olhos que adentraram na mente do mortal e a vasculharam completamente. O taumaturgo engoliu seco e, inconscientemente, tremeu ante a presença divina.
--- O que queres comigo, mortal ? --- sua voz era forte e poderosa.
--- Quero entrar em débito contigo, Deus. Desejo a ...
--- Seu débito começou quando me invocou, tolo! --- interrompeu-o com uma expressão séria --- Agora não me faça perder meu tempo, o que desejas ?
--- Imortalidade... --- falou sem pensar duas vezes. Os olhos finos do Deus o olharam e um sorriso malicioso brotou em sua face.
--- E por que a deseja? --- a pergunta de sempre. Mas dessa vez, havia resposta.
--- Quero não ser escravo do tempo. Quero trapacear a morte e levá-la aos meus inimigos.
O Deus o olhou mais uma última vez com interesse, e indagou:
--- E o que me darás em troca ?
--- O que quiser será seu... apenas quero que realize meu desejo.
--- Não serás mais escravo do tempo, mortal. Serás prisioneiro do sangue e inimigo da luz... bem como aqueles que nascerem de ti. Nossa troca está feita... que todos lhe chamem de Imortal.
Essien, o primeiro Imortal, sorriu...
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