sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Velhos Amigos (Saga de Nihal parte 4)

Os primeiros raios da alvorada o acordaram bem quando o bando se aproximava da entrada de um acampamento. Já estavam no quinto dia de viagem, rumando, pelo o que a vivência nos ermos lhe dizia, noroeste.

Comera mal e podia contar em uma mão quantas horas havia dormido durante o trajeto. Concentrava suas forças a pensar em um jeito de escapar. Houvera algumas chances, entretanto em nenhuma delas seria capaz de levar Yontariel consigo. Restara esperar por outras oportunidades... que tardaram em surgir. A medida que se infurnavam mais no território Käerin, os captores pareciam reforçar a guarda dos prisioneiros, tornando perigosas as tentativas.

A grama e o orvalho das matas sob o luar assumiam tons mortos e acinzentados até que, impiedosas, rochas e poeira roubassem seu solo. As colinas Lomërinas deram lugar a montanhas impassíveis e florestas de Trakidarias, espécie de árvore cujas folhas ficam enterradas, enquanto as raízes se lançam acima da terra. Também conhecidas como florestas avessas, são o símbolo do território Kaërin e formam o brasão da raça.



Desciam por uma trilha íngrime em direção à depressão na qual o assentamento se estabelecera. Percebia que, pelo tamanho, não se tratava de um acampamento, mas sim de uma cidade aos moldes dos elfos ruivos. Uma muralha rústica de troncos vermelhos, fincados ao chão e presos por ripas e cordas, circundava grande parte da extensão do local, protegendo porcamente os habitantes dali. Nihal se perguntava como os habitantes conseguiriam se proteger de um exército de grande porte, quando as figuras enormes nas escarpas captaram sua atenção.

Estátuas de rocha pura espalhadas por toda encosta daquele acidente geográfico. Eram 5 no total, cada um medindo 10 homens de largura e outros tantos de altura. Guerreiros e bárbaros incrustados em fusão com o terreno íngrime, prostravam um dos joelhos ao chão em respeito e compromisso aos habitantes da cidade, enquanto seus olhos frios vigiavam os dias com impassibilidade digna apenas de estátuas. Os elmos cobriam-lhes as faces, impedindo de distingui-los entre si, não fossem os músculos e armas que, teimosos em se curvar ante a passagem do tempo, ainda mantinham-se lisos como pedra recém-polida. Nihal já havia ouvido falar daquele lugar, não apenas uma cidade, mas a maior dentre todas do território. Devras Arsak.

Casinhas rústicas de madeira vermelha se amontoavam umas sobre as outras, em uma arquitetura rápida e prática sem cuidado algum com a estética, reflexo do estilo de vida daqueles que nelas habitavam. Os Kaërins possuiam uma sociedade voltada à guerra; não à guerra de estratégia à qual outros reinos estavam acostumados, mas a guerra desenfreada e mal planejada. A guerra do sangue, do aço e do fogo. Os homens eram iniciados à vida do combate, bem como da forja, tão logo aprendiam a andar ou falar; já as mulheres ficavam encarregadas do artesanato, cuidar da casa e, principalmente, dar à luz a outros Kaërins. Aos escravos, restava o plantio, construção, trato dos Garalskas --- animais de grande porte, cuja carne é apetitosa e seu leite, róseo e adocicado.

Os prisioneiros foram levados para uma área próxima ao centro da cidade, destinada aos treinos diários de esportes e combate. Jovens corriam ao redor do campo aberto, com placas de metal presas ao peito e às pernas, para que adquirissem rapidez e resistência. Os que caiam durante a corrida, vítimas do cansaço, pagavam com sangue e algumas horas extras de corrida; os que aguentavam até o fim, apenas com sangue. No centro da área, outro grupo praticava esgrima e arquearia, enquanto um terceiro treinava as aberrações, humanóides de dois a três metros de altura e principais peões na destrambelhada máquina de guerra Kaërina.



Humanóides que passaram por um grotesco processo de simbiose com Carrascos de Ith, parasitas do Deus dos Monstros capazes de dotar seu portador com habilidades sobrehumanas. A transformação chegava a levar dias e, ao final, o corpo do hospedeiro aumentava desproporcionalmente de tamanho, tornando-se mais forte, todavia não perdendo a rapidez e a destreza. Como pagamento pela dádiva, suas mentes eram destroçadas, passando a obedecer apenas aos domadores. Tornavam-se impassíveis, obedientes e determinados... a mais perfeita máquina de destruição. Com o uso de chicotes e coleiras de espinhos, veteranos ensinavam jovens a controlá-los e domesticá-los no que parecia ser uma luta contra a criatura, até que a mesma fosse sobrepujada e viesse ao chão.



Os prisioneiros --- na grande maioria crianças e jovens, o que surpreendeu Nihal a primeira vista --- foram postos próximos a única construção da área, onde um grupo mal encarado se aproximou. O homem que estava a frente dirigiu a palavra a todos. Possuia cabelo curto e uma cicatriz que ia de um canto da boca até a orelha esquerda, cobrindo boa parte de sua face.

--- Shaelysti sai Drevas Arsak, malaer ! --- fez uma pequena pausa, abrindo um sorriso de repulsa que estendeu-se pela cicatriz.
(--- Bem-vindos a Drevas Arsak, escravos !)

Possuia uma voz rouca e suas palavras eram carregadas de ódio e maldade, capaz de congelar o mais quente dos corações.

--- Ai eis Rhaek, ail tasi os o... shelor ! Ai shor saer olia oli, mai jhorael tasaerelia --- certificou-se, sem necessidade, de que todos estavam prestando atenção. Fez sinal a um elfo e bradou --- TOLAEL EISI KYL THYLYRN COS, BYRN !
(--- Eu sou Rhaek, encarregado de vocês, párias. Ouçam com atenção, pois falarei apenas uma vez ----------------------------------------------------------------- JOVENS E CRIANÇAS SIGAM-NO, AGORA !)

Grande parte do grupo levantou-se, se aproximou do elfo, ao qual Rhaek havia feito sinal, e se afastou. A boca cicatrizada continuou a bradar mais algumas ordens e outros se retiraram, até que restaram apenas Nihal e Yontariel.

--- Byrn o, tia thol. Shi cali ei ker sholol sai mi o sai --- o som mal saia de sua garganta. Ele virou de costas, exibindo as dezenas de cicatrizes em meio aos trapos de couro que cobriam-lhe as costas. --- Tysti shor ti !
(Agora vocês, meus amigos. Nós temos visitantes ansiosos por conhecê-los. -------------------------------------------------------- Venham comigo !)

Os dois foram escoltados por Rhaek e mais dois guerreiros para longe da área de treinamento. Passaram por uma pequena aglomeração próxima a saída. Uma fila de crianças --- elfas, na maioria, além de humanas e anãs ---, um elfo encarregado do grupo e, em um cercado de madeira, cerca de dez a quinze Carrascos. Com 30 a 50 centímetros, se assemelhavam a grotescos cilindros dotados de asas. Possuiam carapaça dura, segmentada e acinzentada, além de garras por toda a extensão inferior do corpo. Na metade de seu comprimento, estendiam-se pequenas asas finas e, em uma das extremidades, duas presas negras que sugavam o sangue de seu hospedeiro. Os parasitas eram colocados nas costas dos jovens, prefurando pele e carne com suas garras, e fixavam-se na espinha dorsal de cada um. A junção era dolorosa e poucas eram as vezes em que o jovem não desmaiada devido à dor. Acordavam sem dor, sem reclamações, sem choro... sem mente.



Nihal e Yontariel seguiram pelas ruas de terra pisada por alguns minutos, até chegarem a uma construção imponente da mesma madeira que dotava a cidade do tom vermelho e sanguinário. Uma enorme porta dupla, com o brasão da raça entalhado --- a árvore de ponta-cabeça --- era vigiada por dois guerreiros que comprimentaram Rhaek em silêncio. Um deles deu dois toques rápidos com a espada na porta e ela abriu-se, revelando um pequeno cômodo sem mobília, vigiado por outros dois elfos e, ao fundo, um pequeno arco que dava acesso a outro ambiente.

Rhaek comprimentou os dois vigias, levando o punho ao peito, e passou pelo arco, seguido pelos dois Lomërins. Revelou-se uma sala muito maior, armas e estandartes da árvore avessa presos à parede, além de alguns mapas de Galenbar, detalhando as fronteiras dos territórios de cada raça élfica e a localização de outras cidades Kaërinas. Havia também algumas cadeiras espalhadas pelo local, bem como alguns barris de uma madeira escura como a noite e, ao centro, duas mesas retangulares da mesma cor. Em uma delas , havia um enorme javali fumegante que exalava no ambiente um aroma de carne recém assada. Junto disso, diversas canecas de bebidas estavam espalhadas pro cima do móvel, aumentando ainda mais o descontraído clima tabernal do local. Em oposição, a outra mesa trazia mapas e rabiscos de batalha. O único resquício de descontração jazia nos três copos pousados sobre a madeira, que de tempo em tempo eram entornados pelas figuras que conversavam. Ao notarem os visitantes, a conversa cessou e elas se aproximaram da entrada.



Uma delas havia lutado com Nihal durante o ataque a Hÿllinalkar, chamava-se Raskaz. Cabelos de um rubro quase negro, musculosa, feições duras e olhar frio. Trajava vestes de metal que mais cobriam suas virilhas e peitos do que realmente protegiam-na de algo. Garras e presas de monstros e animais selvagens compunham colares e amuletos que adornavam a pele de tom roxeado da mulher. Na cintura a estranha espada que, mesmo limpa, adquirira uma cor avermelhada pelo constante fluxo de sangue a qual era submetida.



Os outros dois eram conhecidos de Nihal. Llyana e Pandryl, irmãos e líderes dos Faërins, os elfos de cabelos brancos. Alto e de porte guerreiro, o elfo esboçou um sorriso ao vê-lo, escondendo o semblante de preocupação presente até a pouco. Trajava roupas leves vermelhas com desenhos de dragões, uma cimitarra presa à cintura com alguns lenços prateados, além dos costumeiros adornos de madeira negra nos lóbulos da orelha e no osso do nariz.



Já Llyana apresentava um aspecto mais rústico e bucólico, como era de se esperar de seu papel. As dezenas de alegorias tribais espalhadas pelo corpo procuravam, sem sucesso, esconder sua beleza delicada e sutil. Possuia traços suaves, lábios rosados contrastantes com a tez clara, os olhos tão verde quanto esmeraldas, decorados com uma pintura facial da mesma cor. O cabelo trançado estendia-se até a cintura, tocando no quadril que delineava pequenas ondas na sáia de tecido. Carregava um cajado de madeira e, no ombro direito, repousava um crânio reptiliano em honraria a seus ancestrais. Enquanto ela era a guia espiritual dos Faërins, Pandryl era o líder guerreiro da raça e ambos governavam em harmonia.

--- Tae si pandryl shi ail os shyr. --- Nihal e Yontariel disseram em unissono o comprimento que a etiqueta élfica mandava, meneando a cabeça em reverência.
(--- Que os dragões estejam em vosso sangue.)

--- Tae si tyl shar o maer, tia thol ! --- Pandryl se aproximou de Nihal apertando-o em um abraço forte. Fez o mesmo com Yontariel, e depois os dois beijaram a mão de Llyana. O líder guerreiro bradou com alegria. --- Jhyl sosti bai mi, Omnitho’kae!
(--- Que as Lua vigie seus passos, meu amigo! ---------------------------------- Quanto tempo, Omnitho’kae !)

Omnitho’kae, ou “servo do tempo” no idioma comum. Mais um dos múltiplos nomes a qual Nihal era chamado.

---Mesi air, Shori Jhys.
(--- Com certeza, Lorde Branco.)

--- Tysti o sai, aer thar. --- fez uma menção à mesa do javali fumegante --- Shi cali aistysal sol sai porer.
(--- Venham vocês dois. ------------------------ Comam depressa que temos assuntos importantes a discutir.)

Era um dos costumes dos Kaërins; nenhuma decisão importante deveria ser tomada de estômago vazio e, portanto, Nihal e Yontariel saciaram a fome de cinco dias de refeições fracas e insossas, para então se juntar aos outros três.

--- Tae Ai eir o, Shori Jhys, shar eisi sor aistysali sherolaer ?
(--- Se me permite perguntar, Lorde Branco, o que desejas conversar ?)

--- Si eiras sai Hÿllinalkar --- Raskaz sibilou antes mesmo que Pandryl pudesse responder --- Ai shar var sai eiras sar bolandri...
(--- Ao ataque a Hÿllinalkar --------------- Eu fui paga para atacar o vilarejo...)

--- O eisi mai col saelol ti sar... sal o --- as palavras de Nihal eram cheias de ódio e desprezo.
(--- Muito gentil de sua parte me contar isso... obrigado)

--- Tar pyrn, Omnitho’kae. Ei myjael shys talyr shi vaerolaer --- pela primeira vez ouvia-se a voz doce e calma de Llyana --- Shi cali vaeryl sai shaeloli sar air shar ei ailaesar osaes Lomërin.
(Acalme-se, Omnitho’kae. Não há como voltar atrás de uma palavra proferida ------------------- Nós temos razões para acreditar que o ataque foi ordenado por algum Lomërin.)

--- Shia pai o mae sar, Shori Cel ?
(--- Por que diz isso, Rainha Branca ?)

---Ei shori shyr, ber jhoji si Bol Shyr, shyl ti si vastael shor ei jhaeraes...
(--- Um lobo branco, como aqueles dos Lobos da Noite, trouxe-me o pagamento, junto com uma carta...)

--- Shar pyr air mar ?!
(--- O que ela dizia ?)

--- Sai cor o, shia eilia tael baelaerasor... --- foi Pandryl quem terminou, colocando uma mão no ombro de Nihal.
(--- Para que te matassem, por qualquer meio necessário...)

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