--- Me matar ?! --- a surpresa tremeu-lhe a mão, deixando cair a caneca de bebida.
--- Sim, Omnitho’kae --- Pandryl recolheu o objeto do chão e murmurou algo que fez com que a bebida retornasse à caneca em um movimento rápido e fluido --- Acreditamos que foi ordem de seu irmão, Nihal.
--- Ainda tenho a carta que o lobo me trouxe --- a voz rouca de Raskaz ecoou no ambiente. Era a segunda em comando na hierarquia Kaërin, respondendo apenas para o Lorde Rubro.
Nihal tomou a carta, passando os olhos rápidos pelas letras. As palavras não revelavam nada mais do que os outros já lhe haviam contado e todos ficariam na dúvida realmente, não fossem as habilidades do “servo do tempo”.
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Todos os deuses possuiam seus clérigos, servos à seu serviço dotados de uma minúscula centelha divina que, aliada a fé, lhes permitam capacidades mágicas. Todos com exceção de Omnitheron.
A essência caótica do Deus do Tempo não permitia que este os possuísse. Era passado estável, concreto e imutável. Lembranças, aprendizados, vitórias e erros. Era presente em movimento, instantâneo e vivo. Ações ainda acontecendo. Era futuro duvidoso e modificável. Incerteza e esperança. Era paradoxo. O ontem, o hoje e o amanhã.
O estudo do Tempo só era possível através do conhecimento do Arcannum, o alfabeto dos “nomes verdadeiros”, que designava mais de cem palavras para as diversas facetas do Tempo. E, se o pré-requisito já era difícil e ancestral por si só, imagine só a própria ciência, cujos adeptos recebiam o título de “servos dos tempo”.
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O elfo fechou os olhos, apertando o pergaminho em ambas as mãos. Sentiu um formigamento percorrer todo o corpo, como um pequeno choque fraco a passear por seus músculos. Murmurou o Nome do Tempo. Sua mente deu voltas e sentiu o corpo esfriar. Primeiro achou que era a reação natural do corpo, fornecendo energia para a magia, mas depois o frio pareceu tomar conta do ambiente. Percebeu não estar mais na sala em Devras Arsak e sim em uma típica floresta Lomërin.
A lua e as estrelas sempre presentes no céu vigiavam o encontro das duas figuras. Como um espectro invisível, Nihal observava-os de longe:
--- Você tem certeza, meu Lorde?
--- Sim, Gallënrard --- reconheceu-os rapidamente. Seu irmão e Lorde, Varnilael e um de seus conselheiros. --- Ele nunca voltaria para Galenbar de mãos vazias. Deve estar em posse do livro e duvido muito que não o tenha lido. Agora vá, faça como ordenei.
--- Certo, meu Lorde.
O elfo se afastou, seguido de perto por um lobo branco, e Nihal fez com que o Tempo passasse mais rápidamente. Primeiro segundos, depois minutos e enfim horas transcorreram em um piscar de olhos até que o conselheiro parasse sua caminhada. A carta e um volumoso saco de moedas foram amarrados por volta do pescoço do mascote lupino e este seguiu mais alguns quilômetros em meio as árvores até que deparou-se com Raskaz. Sem grandes palavras, a elfa recolheu a mensagem e o amontoado de dinheiro. Ambos se viraram e seguiram seus caminhos.
A névoa que cobria a vegetação rasteira nublou a visão do servo do tempo e, como um golpe veloz, a sala de comando Kaërin tomou forma. Tonto e fraco, o elfo jogou-se em uma cadeira próxima.
--- E então, meu amigo ? --- Pandryl lhe entregou uma erva de gosto amargo e sem cor que Nihal mastigou. Era doto que a planta, quando digerida, restaurava a força e o vigor no corpo.
--- Varnilael... ele ordenou... o ataque. Quer me matar.
--- Algum motivo para isso, Omnitho’kae? --- dessa vez, fora Llyana quem indagara. A voz calma e doce até suavizava o perigo que Nihal corria.
Entretanto, em nada alterava a gravidade da pergunta. Respondê-la seria repassar conhecimentos que talvez devessem ser deixados onde estavam... esquecidos. Não respondê-la seria trair a confiança dos presentes (não que confiasse em Raskaz, mas não tinha muita escolha).
--- Todos esses anos, estive a procura de um tomo sobre uma lenda tão velha quanto nosso mundo. Passei muito tempo vasculhando as inúmeras e extensas bibliotecas de Eä’Singen até que, finalmente, o encontrei em posse de um bardo --- esta não foi a real velocidade em que falava tudo. Nihal pausou diversas vezes, tomando fôlego e organizando as idéias, o que seria deveras demorado se este narrador o respeitasse. --- Este bardo era protegido por um mecenas do Reino da Fronteira do Norte e, assim que roubei o livro, o nobre colocou a minha cabeça a preço. Por sorte, consegui fugir até o território de Elandil e fui salvo.
--- Mas o que tem esse livro, Nihal? --- o guerreiro de cabelos brancos nunca fora conhecido por sua paciência.
--- Falava sobre uma raça que habitou Eä a muito tempo atrás. Talvez antes mesmo de elfos, halflings, humanos ou anões... reza a lenda que possa ter sido antes dos Deuses. Viveram centenas de anos na região que hoje é Überfall, com o único objetivo de manter aprisionada uma entidade ou poder descomunal.
--- Impossível... todos sabemos que Eä foi criada pelos próprios Deuses. Não há como ter existido uma civilização antes deles --- era notável a exaltação na voz da sacerdotisa Faërin.
--- Eu pensei na mesma coisa, Llyana. Mas apenas digo o que li... não cabe a mim discutir a veracidade de duas lendas --- Nihal sempre fora cético em acreditar em contos e histórias. Fossem elas da criação do mundo ou sobre banalidades, preferia checar tudo por si só, caso contrário sempre lhe restaria a dúvida, por menor que fosse.
--- E que fim levaram? --- Raskaz não escondia sua curiosidade e temos que concordar que se você estivesse no lugar dela, provavelmente também não o teria feito.
--- O mesmo poder que eram encarregados de proteger corrompeu uma parte da raça e houve uma cisão, um grupo rumou norte e outro veio para o sul. O livro narrava os fatos dos que foram corrompidos. Estes seguiram até a costa e se aventuraram no Oceano. Isso é tudo o que sei...
--- E o que seu irmão pode querer com eles, Omnitho’kae?
--- Talvez esteja atrás do mesmo poder que os corrompeu... e, pelas descrições do tomo, se isso acontecer, temo o que pode acontecer não só com Galenbar, mas com Eä ---curvou-se, apoiando os braços nas coxas e a testa nas mãos. --- Eu era o único que sabia sobre o conteúdo do tomo e, portanto, o Lorde quis me eliminar para que ninguém tentasse o impedir.
--- O que faremos, Pan? --- Llyana aproximou-se do irmão, envolvendo seus braços no dele.
--- Vamos impedi-lo, irmã. Falamos com os outros lordes elfos e lutamos. Eu e Nihal tentaremos chegar até Varnilael antes que ele se encontre a outra raça.
--- Deixem essa tarefa comigo. Eu irei atrás de meu irmão. Vocês tem nações a cuidar, Pandryl. Orelhas contam com...
--- Eles tem, eu não. O Lorde Rubro pode muito bem governar os Kaërin sem mim. Irei com você, cabelos negros --- Raskaz o interrompeu com a oferta que mais parecia uma ordem. Nihal não estava em posição de negar ajuda, sabia que a jornada seria difícil.
--- Certo, partiremos o mais breve possível. Teremos que cruzar o território dos Ethëlarin, Varnilael está pelo menos dez dias a nossa frente.
Os outros concordaram com acenos de cabeça e os preparativos foram feitos.
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10 dias depois, na costa nordeste de Galenbar...
As praias do país élfico eram agradáveis. A brisa calma e melodiosa, alternando com o som do mar e os golpes das ondas nas rochas próximas. As conchas cobriam as areias amarelas daquela parte do país, formando uma verdadeira linha que dividia a terra do mar. Ao longe, o sol, inexistente no território Lomërin, dançava com as nuvens no baile do crepúsculo, tingindo os céus de um vermelho azulado e iluminando o pequeno barco que chegava à praia.
De dentro, uma figura alta e musculosa ergueu-se e se dirigiu ao homem e ao lobo sentados na areia. Possuia pelos escuros como a noite que cobriam todo o corpo e olhos felinos como o lupino a sua frente. Esboçou um sorriso, mostrando as presas, ao falar:
--- Seu chamado foi ouvido Lorde Élfico...
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