sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Livro (Saga de Nihal parte 5)




--- Me matar ?! --- a surpresa tremeu-lhe a mão, deixando cair a caneca de bebida.



--- Sim, Omnitho’kae --- Pandryl recolheu o objeto do chão e murmurou algo que fez com que a bebida retornasse à caneca em um movimento rápido e fluido --- Acreditamos que foi ordem de seu irmão, Nihal.



--- Ainda tenho a carta que o lobo me trouxe --- a voz rouca de Raskaz ecoou no ambiente. Era a segunda em comando na hierarquia Kaërin, respondendo apenas para o Lorde Rubro.

Nihal tomou a carta, passando os olhos rápidos pelas letras. As palavras não revelavam nada mais do que os outros já lhe haviam contado e todos ficariam na dúvida realmente, não fossem as habilidades do “servo do tempo”.

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Todos os deuses possuiam seus clérigos, servos à seu serviço dotados de uma minúscula centelha divina que, aliada a fé, lhes permitam capacidades mágicas. Todos com exceção de Omnitheron.

A essência caótica do Deus do Tempo não permitia que este os possuísse. Era passado estável, concreto e imutável. Lembranças, aprendizados, vitórias e erros. Era presente em movimento, instantâneo e vivo. Ações ainda acontecendo. Era futuro duvidoso e modificável. Incerteza e esperança. Era paradoxo. O ontem, o hoje e o amanhã.

O estudo do Tempo só era possível através do conhecimento do Arcannum, o alfabeto dos “nomes verdadeiros”, que designava mais de cem palavras para as diversas facetas do Tempo. E, se o pré-requisito já era difícil e ancestral por si só, imagine só a própria ciência, cujos adeptos recebiam o título de “servos dos tempo”.

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O elfo fechou os olhos, apertando o pergaminho em ambas as mãos. Sentiu um formigamento percorrer todo o corpo, como um pequeno choque fraco a passear por seus músculos. Murmurou o Nome do Tempo. Sua mente deu voltas e sentiu o corpo esfriar. Primeiro achou que era a reação natural do corpo, fornecendo energia para a magia, mas depois o frio pareceu tomar conta do ambiente. Percebeu não estar mais na sala em Devras Arsak e sim em uma típica floresta Lomërin.



A lua e as estrelas sempre presentes no céu vigiavam o encontro das duas figuras. Como um espectro invisível, Nihal observava-os de longe:

--- Você tem certeza, meu Lorde?

--- Sim, Gallënrard --- reconheceu-os rapidamente. Seu irmão e Lorde, Varnilael e um de seus conselheiros. --- Ele nunca voltaria para Galenbar de mãos vazias. Deve estar em posse do livro e duvido muito que não o tenha lido. Agora vá, faça como ordenei.

--- Certo, meu Lorde.

O elfo se afastou, seguido de perto por um lobo branco, e Nihal fez com que o Tempo passasse mais rápidamente. Primeiro segundos, depois minutos e enfim horas transcorreram em um piscar de olhos até que o conselheiro parasse sua caminhada. A carta e um volumoso saco de moedas foram amarrados por volta do pescoço do mascote lupino e este seguiu mais alguns quilômetros em meio as árvores até que deparou-se com Raskaz. Sem grandes palavras, a elfa recolheu a mensagem e o amontoado de dinheiro. Ambos se viraram e seguiram seus caminhos.


A névoa que cobria a vegetação rasteira nublou a visão do servo do tempo e, como um golpe veloz, a sala de comando Kaërin tomou forma. Tonto e fraco, o elfo jogou-se em uma cadeira próxima.

--- E então, meu amigo ? --- Pandryl lhe entregou uma erva de gosto amargo e sem cor que Nihal mastigou. Era doto que a planta, quando digerida, restaurava a força e o vigor no corpo.

--- Varnilael... ele ordenou... o ataque. Quer me matar.



--- Algum motivo para isso, Omnitho’kae? --- dessa vez, fora Llyana quem indagara. A voz calma e doce até suavizava o perigo que Nihal corria.

Entretanto, em nada alterava a gravidade da pergunta. Respondê-la seria repassar conhecimentos que talvez devessem ser deixados onde estavam... esquecidos. Não respondê-la seria trair a confiança dos presentes (não que confiasse em Raskaz, mas não tinha muita escolha).

--- Todos esses anos, estive a procura de um tomo sobre uma lenda tão velha quanto nosso mundo. Passei muito tempo vasculhando as inúmeras e extensas bibliotecas de Eä’Singen até que, finalmente, o encontrei em posse de um bardo --- esta não foi a real velocidade em que falava tudo. Nihal pausou diversas vezes, tomando fôlego e organizando as idéias, o que seria deveras demorado se este narrador o respeitasse. --- Este bardo era protegido por um mecenas do Reino da Fronteira do Norte e, assim que roubei o livro, o nobre colocou a minha cabeça a preço. Por sorte, consegui fugir até o território de Elandil e fui salvo.

--- Mas o que tem esse livro, Nihal? --- o guerreiro de cabelos brancos nunca fora conhecido por sua paciência.

--- Falava sobre uma raça que habitou Eä a muito tempo atrás. Talvez antes mesmo de elfos, halflings, humanos ou anões... reza a lenda que possa ter sido antes dos Deuses. Viveram centenas de anos na região que hoje é Überfall, com o único objetivo de manter aprisionada uma entidade ou poder descomunal.

--- Impossível... todos sabemos que Eä foi criada pelos próprios Deuses. Não há como ter existido uma civilização antes deles --- era notável a exaltação na voz da sacerdotisa Faërin.

--- Eu pensei na mesma coisa, Llyana. Mas apenas digo o que li... não cabe a mim discutir a veracidade de duas lendas --- Nihal sempre fora cético em acreditar em contos e histórias. Fossem elas da criação do mundo ou sobre banalidades, preferia checar tudo por si só, caso contrário sempre lhe restaria a dúvida, por menor que fosse.

--- E que fim levaram? --- Raskaz não escondia sua curiosidade e temos que concordar que se você estivesse no lugar dela, provavelmente também não o teria feito.

--- O mesmo poder que eram encarregados de proteger corrompeu uma parte da raça e houve uma cisão, um grupo rumou norte e outro veio para o sul. O livro narrava os fatos dos que foram corrompidos. Estes seguiram até a costa e se aventuraram no Oceano. Isso é tudo o que sei...

--- E o que seu irmão pode querer com eles, Omnitho’kae?

--- Talvez esteja atrás do mesmo poder que os corrompeu... e, pelas descrições do tomo, se isso acontecer, temo o que pode acontecer não só com Galenbar, mas com Eä ---curvou-se, apoiando os braços nas coxas e a testa nas mãos. --- Eu era o único que sabia sobre o conteúdo do tomo e, portanto, o Lorde quis me eliminar para que ninguém tentasse o impedir.

--- O que faremos, Pan? --- Llyana aproximou-se do irmão, envolvendo seus braços no dele.

--- Vamos impedi-lo, irmã. Falamos com os outros lordes elfos e lutamos. Eu e Nihal tentaremos chegar até Varnilael antes que ele se encontre a outra raça.

--- Deixem essa tarefa comigo. Eu irei atrás de meu irmão. Vocês tem nações a cuidar, Pandryl. Orelhas contam com...

--- Eles tem, eu não. O Lorde Rubro pode muito bem governar os Kaërin sem mim. Irei com você, cabelos negros --- Raskaz o interrompeu com a oferta que mais parecia uma ordem. Nihal não estava em posição de negar ajuda, sabia que a jornada seria difícil.

--- Certo, partiremos o mais breve possível. Teremos que cruzar o território dos Ethëlarin, Varnilael está pelo menos dez dias a nossa frente.

Os outros concordaram com acenos de cabeça e os preparativos foram feitos.

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10 dias depois, na costa nordeste de Galenbar...



As praias do país élfico eram agradáveis. A brisa calma e melodiosa, alternando com o som do mar e os golpes das ondas nas rochas próximas. As conchas cobriam as areias amarelas daquela parte do país, formando uma verdadeira linha que dividia a terra do mar. Ao longe, o sol, inexistente no território Lomërin, dançava com as nuvens no baile do crepúsculo, tingindo os céus de um vermelho azulado e iluminando o pequeno barco que chegava à praia.

De dentro, uma figura alta e musculosa ergueu-se e se dirigiu ao homem e ao lobo sentados na areia. Possuia pelos escuros como a noite que cobriam todo o corpo e olhos felinos como o lupino a sua frente. Esboçou um sorriso, mostrando as presas, ao falar:

--- Seu chamado foi ouvido Lorde Élfico...

Velhos Amigos (Saga de Nihal parte 4)

Os primeiros raios da alvorada o acordaram bem quando o bando se aproximava da entrada de um acampamento. Já estavam no quinto dia de viagem, rumando, pelo o que a vivência nos ermos lhe dizia, noroeste.

Comera mal e podia contar em uma mão quantas horas havia dormido durante o trajeto. Concentrava suas forças a pensar em um jeito de escapar. Houvera algumas chances, entretanto em nenhuma delas seria capaz de levar Yontariel consigo. Restara esperar por outras oportunidades... que tardaram em surgir. A medida que se infurnavam mais no território Käerin, os captores pareciam reforçar a guarda dos prisioneiros, tornando perigosas as tentativas.

A grama e o orvalho das matas sob o luar assumiam tons mortos e acinzentados até que, impiedosas, rochas e poeira roubassem seu solo. As colinas Lomërinas deram lugar a montanhas impassíveis e florestas de Trakidarias, espécie de árvore cujas folhas ficam enterradas, enquanto as raízes se lançam acima da terra. Também conhecidas como florestas avessas, são o símbolo do território Kaërin e formam o brasão da raça.



Desciam por uma trilha íngrime em direção à depressão na qual o assentamento se estabelecera. Percebia que, pelo tamanho, não se tratava de um acampamento, mas sim de uma cidade aos moldes dos elfos ruivos. Uma muralha rústica de troncos vermelhos, fincados ao chão e presos por ripas e cordas, circundava grande parte da extensão do local, protegendo porcamente os habitantes dali. Nihal se perguntava como os habitantes conseguiriam se proteger de um exército de grande porte, quando as figuras enormes nas escarpas captaram sua atenção.

Estátuas de rocha pura espalhadas por toda encosta daquele acidente geográfico. Eram 5 no total, cada um medindo 10 homens de largura e outros tantos de altura. Guerreiros e bárbaros incrustados em fusão com o terreno íngrime, prostravam um dos joelhos ao chão em respeito e compromisso aos habitantes da cidade, enquanto seus olhos frios vigiavam os dias com impassibilidade digna apenas de estátuas. Os elmos cobriam-lhes as faces, impedindo de distingui-los entre si, não fossem os músculos e armas que, teimosos em se curvar ante a passagem do tempo, ainda mantinham-se lisos como pedra recém-polida. Nihal já havia ouvido falar daquele lugar, não apenas uma cidade, mas a maior dentre todas do território. Devras Arsak.

Casinhas rústicas de madeira vermelha se amontoavam umas sobre as outras, em uma arquitetura rápida e prática sem cuidado algum com a estética, reflexo do estilo de vida daqueles que nelas habitavam. Os Kaërins possuiam uma sociedade voltada à guerra; não à guerra de estratégia à qual outros reinos estavam acostumados, mas a guerra desenfreada e mal planejada. A guerra do sangue, do aço e do fogo. Os homens eram iniciados à vida do combate, bem como da forja, tão logo aprendiam a andar ou falar; já as mulheres ficavam encarregadas do artesanato, cuidar da casa e, principalmente, dar à luz a outros Kaërins. Aos escravos, restava o plantio, construção, trato dos Garalskas --- animais de grande porte, cuja carne é apetitosa e seu leite, róseo e adocicado.

Os prisioneiros foram levados para uma área próxima ao centro da cidade, destinada aos treinos diários de esportes e combate. Jovens corriam ao redor do campo aberto, com placas de metal presas ao peito e às pernas, para que adquirissem rapidez e resistência. Os que caiam durante a corrida, vítimas do cansaço, pagavam com sangue e algumas horas extras de corrida; os que aguentavam até o fim, apenas com sangue. No centro da área, outro grupo praticava esgrima e arquearia, enquanto um terceiro treinava as aberrações, humanóides de dois a três metros de altura e principais peões na destrambelhada máquina de guerra Kaërina.



Humanóides que passaram por um grotesco processo de simbiose com Carrascos de Ith, parasitas do Deus dos Monstros capazes de dotar seu portador com habilidades sobrehumanas. A transformação chegava a levar dias e, ao final, o corpo do hospedeiro aumentava desproporcionalmente de tamanho, tornando-se mais forte, todavia não perdendo a rapidez e a destreza. Como pagamento pela dádiva, suas mentes eram destroçadas, passando a obedecer apenas aos domadores. Tornavam-se impassíveis, obedientes e determinados... a mais perfeita máquina de destruição. Com o uso de chicotes e coleiras de espinhos, veteranos ensinavam jovens a controlá-los e domesticá-los no que parecia ser uma luta contra a criatura, até que a mesma fosse sobrepujada e viesse ao chão.



Os prisioneiros --- na grande maioria crianças e jovens, o que surpreendeu Nihal a primeira vista --- foram postos próximos a única construção da área, onde um grupo mal encarado se aproximou. O homem que estava a frente dirigiu a palavra a todos. Possuia cabelo curto e uma cicatriz que ia de um canto da boca até a orelha esquerda, cobrindo boa parte de sua face.

--- Shaelysti sai Drevas Arsak, malaer ! --- fez uma pequena pausa, abrindo um sorriso de repulsa que estendeu-se pela cicatriz.
(--- Bem-vindos a Drevas Arsak, escravos !)

Possuia uma voz rouca e suas palavras eram carregadas de ódio e maldade, capaz de congelar o mais quente dos corações.

--- Ai eis Rhaek, ail tasi os o... shelor ! Ai shor saer olia oli, mai jhorael tasaerelia --- certificou-se, sem necessidade, de que todos estavam prestando atenção. Fez sinal a um elfo e bradou --- TOLAEL EISI KYL THYLYRN COS, BYRN !
(--- Eu sou Rhaek, encarregado de vocês, párias. Ouçam com atenção, pois falarei apenas uma vez ----------------------------------------------------------------- JOVENS E CRIANÇAS SIGAM-NO, AGORA !)

Grande parte do grupo levantou-se, se aproximou do elfo, ao qual Rhaek havia feito sinal, e se afastou. A boca cicatrizada continuou a bradar mais algumas ordens e outros se retiraram, até que restaram apenas Nihal e Yontariel.

--- Byrn o, tia thol. Shi cali ei ker sholol sai mi o sai --- o som mal saia de sua garganta. Ele virou de costas, exibindo as dezenas de cicatrizes em meio aos trapos de couro que cobriam-lhe as costas. --- Tysti shor ti !
(Agora vocês, meus amigos. Nós temos visitantes ansiosos por conhecê-los. -------------------------------------------------------- Venham comigo !)

Os dois foram escoltados por Rhaek e mais dois guerreiros para longe da área de treinamento. Passaram por uma pequena aglomeração próxima a saída. Uma fila de crianças --- elfas, na maioria, além de humanas e anãs ---, um elfo encarregado do grupo e, em um cercado de madeira, cerca de dez a quinze Carrascos. Com 30 a 50 centímetros, se assemelhavam a grotescos cilindros dotados de asas. Possuiam carapaça dura, segmentada e acinzentada, além de garras por toda a extensão inferior do corpo. Na metade de seu comprimento, estendiam-se pequenas asas finas e, em uma das extremidades, duas presas negras que sugavam o sangue de seu hospedeiro. Os parasitas eram colocados nas costas dos jovens, prefurando pele e carne com suas garras, e fixavam-se na espinha dorsal de cada um. A junção era dolorosa e poucas eram as vezes em que o jovem não desmaiada devido à dor. Acordavam sem dor, sem reclamações, sem choro... sem mente.



Nihal e Yontariel seguiram pelas ruas de terra pisada por alguns minutos, até chegarem a uma construção imponente da mesma madeira que dotava a cidade do tom vermelho e sanguinário. Uma enorme porta dupla, com o brasão da raça entalhado --- a árvore de ponta-cabeça --- era vigiada por dois guerreiros que comprimentaram Rhaek em silêncio. Um deles deu dois toques rápidos com a espada na porta e ela abriu-se, revelando um pequeno cômodo sem mobília, vigiado por outros dois elfos e, ao fundo, um pequeno arco que dava acesso a outro ambiente.

Rhaek comprimentou os dois vigias, levando o punho ao peito, e passou pelo arco, seguido pelos dois Lomërins. Revelou-se uma sala muito maior, armas e estandartes da árvore avessa presos à parede, além de alguns mapas de Galenbar, detalhando as fronteiras dos territórios de cada raça élfica e a localização de outras cidades Kaërinas. Havia também algumas cadeiras espalhadas pelo local, bem como alguns barris de uma madeira escura como a noite e, ao centro, duas mesas retangulares da mesma cor. Em uma delas , havia um enorme javali fumegante que exalava no ambiente um aroma de carne recém assada. Junto disso, diversas canecas de bebidas estavam espalhadas pro cima do móvel, aumentando ainda mais o descontraído clima tabernal do local. Em oposição, a outra mesa trazia mapas e rabiscos de batalha. O único resquício de descontração jazia nos três copos pousados sobre a madeira, que de tempo em tempo eram entornados pelas figuras que conversavam. Ao notarem os visitantes, a conversa cessou e elas se aproximaram da entrada.



Uma delas havia lutado com Nihal durante o ataque a Hÿllinalkar, chamava-se Raskaz. Cabelos de um rubro quase negro, musculosa, feições duras e olhar frio. Trajava vestes de metal que mais cobriam suas virilhas e peitos do que realmente protegiam-na de algo. Garras e presas de monstros e animais selvagens compunham colares e amuletos que adornavam a pele de tom roxeado da mulher. Na cintura a estranha espada que, mesmo limpa, adquirira uma cor avermelhada pelo constante fluxo de sangue a qual era submetida.



Os outros dois eram conhecidos de Nihal. Llyana e Pandryl, irmãos e líderes dos Faërins, os elfos de cabelos brancos. Alto e de porte guerreiro, o elfo esboçou um sorriso ao vê-lo, escondendo o semblante de preocupação presente até a pouco. Trajava roupas leves vermelhas com desenhos de dragões, uma cimitarra presa à cintura com alguns lenços prateados, além dos costumeiros adornos de madeira negra nos lóbulos da orelha e no osso do nariz.



Já Llyana apresentava um aspecto mais rústico e bucólico, como era de se esperar de seu papel. As dezenas de alegorias tribais espalhadas pelo corpo procuravam, sem sucesso, esconder sua beleza delicada e sutil. Possuia traços suaves, lábios rosados contrastantes com a tez clara, os olhos tão verde quanto esmeraldas, decorados com uma pintura facial da mesma cor. O cabelo trançado estendia-se até a cintura, tocando no quadril que delineava pequenas ondas na sáia de tecido. Carregava um cajado de madeira e, no ombro direito, repousava um crânio reptiliano em honraria a seus ancestrais. Enquanto ela era a guia espiritual dos Faërins, Pandryl era o líder guerreiro da raça e ambos governavam em harmonia.

--- Tae si pandryl shi ail os shyr. --- Nihal e Yontariel disseram em unissono o comprimento que a etiqueta élfica mandava, meneando a cabeça em reverência.
(--- Que os dragões estejam em vosso sangue.)

--- Tae si tyl shar o maer, tia thol ! --- Pandryl se aproximou de Nihal apertando-o em um abraço forte. Fez o mesmo com Yontariel, e depois os dois beijaram a mão de Llyana. O líder guerreiro bradou com alegria. --- Jhyl sosti bai mi, Omnitho’kae!
(--- Que as Lua vigie seus passos, meu amigo! ---------------------------------- Quanto tempo, Omnitho’kae !)

Omnitho’kae, ou “servo do tempo” no idioma comum. Mais um dos múltiplos nomes a qual Nihal era chamado.

---Mesi air, Shori Jhys.
(--- Com certeza, Lorde Branco.)

--- Tysti o sai, aer thar. --- fez uma menção à mesa do javali fumegante --- Shi cali aistysal sol sai porer.
(--- Venham vocês dois. ------------------------ Comam depressa que temos assuntos importantes a discutir.)

Era um dos costumes dos Kaërins; nenhuma decisão importante deveria ser tomada de estômago vazio e, portanto, Nihal e Yontariel saciaram a fome de cinco dias de refeições fracas e insossas, para então se juntar aos outros três.

--- Tae Ai eir o, Shori Jhys, shar eisi sor aistysali sherolaer ?
(--- Se me permite perguntar, Lorde Branco, o que desejas conversar ?)

--- Si eiras sai Hÿllinalkar --- Raskaz sibilou antes mesmo que Pandryl pudesse responder --- Ai shar var sai eiras sar bolandri...
(--- Ao ataque a Hÿllinalkar --------------- Eu fui paga para atacar o vilarejo...)

--- O eisi mai col saelol ti sar... sal o --- as palavras de Nihal eram cheias de ódio e desprezo.
(--- Muito gentil de sua parte me contar isso... obrigado)

--- Tar pyrn, Omnitho’kae. Ei myjael shys talyr shi vaerolaer --- pela primeira vez ouvia-se a voz doce e calma de Llyana --- Shi cali vaeryl sai shaeloli sar air shar ei ailaesar osaes Lomërin.
(Acalme-se, Omnitho’kae. Não há como voltar atrás de uma palavra proferida ------------------- Nós temos razões para acreditar que o ataque foi ordenado por algum Lomërin.)

--- Shia pai o mae sar, Shori Cel ?
(--- Por que diz isso, Rainha Branca ?)

---Ei shori shyr, ber jhoji si Bol Shyr, shyl ti si vastael shor ei jhaeraes...
(--- Um lobo branco, como aqueles dos Lobos da Noite, trouxe-me o pagamento, junto com uma carta...)

--- Shar pyr air mar ?!
(--- O que ela dizia ?)

--- Sai cor o, shia eilia tael baelaerasor... --- foi Pandryl quem terminou, colocando uma mão no ombro de Nihal.
(--- Para que te matassem, por qualquer meio necessário...)

Sobre nomes e magias (Saga de Nihal parte 3)

Nomes...

Sabe, há pessoas que se perguntam a importância deles. Nomes dão, desculpe-me pela definição, nomes às coisas. Fornecem a essência do estado de existir, bem como são o princípio da caracterização de cada objeto, ser, sentimento... de tudo. Nomes também definem as muitas pessoas que você finge ser ou realmente é.

Sim... isso provavelmente ficou confuso mas, veja bem, minha vida nunca foi uma reta sem desvios, quedas e ascensões. Muito pelo contrário, está mais para uma daquelas figuras complexas que os matemáticos de Omnüs encontram nos fenômenos da natureza. E, como vamos falar da minha vida, não me importo se você ficou confuso ao ler este diário... leia de novo e de novo. Se não entender, vá ler a história dos heróis ou sobre a formação de cada reino da fronteira.

Já que ficou aqui... voltemos ao assunto: os nomes...

Nunca fui conhecido por apenas uma maneira ou alcunha. Fui chamado de diversas formas e, portanto, fui diferentes pessoas. Nasci na maldita terra onde a cor do cabelo parece ser mais importante do que o tamanho das orelhas, Galenbar... mas você já deve saber isso, se leu as outras entradas deste livro. Sou um elfo de cabelos negros, mas não fui criado como tal. Levei à morte aquela que me deu sua vida... irônico isso, não ? Bem, não importa.

Saí da terra dos elfos, ainda jovem... mal me lembro do dia. Mentira... provavelmente lembro, mas vou-lhes poupar de tal chatice. Saiba apenas que meu irmão de criação me enviou em uma comitiva de comerciantes para as terras que viriam a ser conhecidas como o Reino de Ferro e Carvão, Omnüs. A caravana foi e voltou, mas, a pedido de meu irmão, eu fiquei com um mentor...Farallen.

Naquela época, eu era Mithae. Nunca entendi porque ele me chamava assim, mas dizia significar que eu era sábio e de bom coração, mas tinha muito a aprender. Me ensinou a matemática, alquimia, biologia e mecânica... mas, principalmente, a dar nome às coisas. Se você nunca esteve em Omnüs, ou nunca presenciou os arcanos de lá, deve me achar um idiota. Afinal, dar nomes não é uma coisa, no mínimo, banal?

Naquela época, alguns estudiosos haviam descoberto um idioma ancestral, tão velho quanto os próprios elfos ou os deuses. Poucos o conheciam e ainda menor era o número dos que o dominavam. Farallen era um destes... De acordo com ele, tal língua representava o verdadeiro nome de cada coisa conhecida e desconhecida em Eä. Entenda bem que há diferença entre chamar um ser por algum nome inventado e chamá-la pelo seu nome real. Para facilitar, podemos dizer que o nome inventado seria apenas um pergaminho com uma inscrição. Você sabe o que aquilo significa, mas não consegue obter mais nenhuma informação do objeto. Já, o nome real trata-se da verdadeira estrutura química e física do objeto... e, portanto, conhecendo-o, você sabe tudo o necessário sobre o ser ao qual ele se refere. A medida que passa a conhecer mais e mais a coisa, você torna-se capaz de manipulá-la e de alterá-la da forma como desejar.

Você, sábio mago ou feiticeiro, pode talvez argumentar que isso quebraria os limites naturais da magia. Manipular a matéria livremente é possível até certo ponto... mas existe um limite natural que nunca é quebrado... nem mesmo pelo mais poderoso deus. Sabemos que não há como criar matéria a partir do vazio e, a famosa lei da troca equivalente ainda continua valendo neste caso.

O que o Arcannum, como denomino o tal idioma, faz é utilizar a energia vindoura do próprio arcanista como substrato para esta troca. Seja por esforço próprio ou capacidade inata, você fornece energia em troca de manipular a estrutura do ser, através de seu nome verdadeiro. Essa é a essência da magia que Farallen ensinou-me. E por isso que dou a devida importância aos nomes...

Quando atingi a maturidade, e já dominava o Arcannum, me despedi de meu mentor e segui de volta para Galenbar. Ficara sabendo que, neste meio tempo, meu irmão, Varnilael, havia se tornado Lorde e já era hora de lhe fazer uma visitinha.

Me despedi como Mithae e fui recebido como o andarilho errante ou, em nossa língua, Nihallinael.

Reunião de Família (Saga de Nihal parte 2)

Nihallinael seguiu pelas florestas do território Ellärin por alguns dias, sempre escoltado pelos cinco soldados de Elandil. Invisível, o grupo parecia se combinar à fauna local, restando nem ao menos um galho ou folha fora do lugar após sua passagem.



A medida que se aproximavam da fronteira, o sol se escondia sob o horizonte, até que o céu foi coberto pelo manto estrelado da noite. Por mais que o corpo do elfo sentisse estar próximo do meio-dia, no território dos Lómërin era sempre noite e a lua reinava soberana acima das florestas. Ao chegar próximo da borda da fronteira, os guardas se despediram:

--- Aen eizia cia byr maedasastyr, Nihallinael... Shai bondraes.
(É aqui que nos separamos, Nihallinael... Boa viagem)

--- Sal o... tae saesi eilar shi saer ail os var.
(Obrigado... que sempre haja árvores em vossos caminhos)

Os elfos acenaram e Nihal seguiu noite adentro, em direção à Hÿllinalkar, um vilarejo ribeirinho bastante próximo do limite entre as terras da noite, dos Kaërin e dos Ellärin. Recebera uma mensagem por um corvo alguns dias atrás... deveria encontrar o Lorde na aldeia o mais rápido possível. Não entendera os motivos, afinal Hÿllinalkar era um local feio, pequeno e sem o requinte que Varnilael tanto apreciava.

A poucas horas de marcha e já percebia as alterações no ambiente. Diferentemente das florestas dos Ellärins, a temperatura nos bosques da noite era menor e uma pequena camada de névoa era visível próxima ao solo. As árvores ali eram menores, com galhos mais finos e frágeis, abrigando um infinidade de espécies de animais noturnos, como corujas e morcegos. A fauna parecia mais traçoeira e perigosa, de modo que Nihallinael por vezes percebia estar sendo observado por pares de olhos ao longe.



Avistou, no terceiro dia, uma árvore de tronco largo a alguns metros de um riacho. Uma lua entalhada na madeira sinalizava a entrada para o vilarejo. Checou a segurança do objeto que carregava na mochila, se aproximou e assoviou duas vezes. Ouviu três silvos ao longe e respondeu com cinco mais longos. Um silêncio seguiu-se até que da copa da árvore desceram dois sentinelas, de um veado morto, outro se metamorfoseou e do riacho surgiram mais dois .

--- Aidaeloria osaer, malaes ! --- um dos sentinelas bradou com uma adaga em punhos.
(Identifique-se, estranho)

---Nihallinael, thys si Cyrantar thastolia, jhys’m shyraes. Ai eis caesi sai taer shor tia aeli…
(Nihallinael, da linhagem Cyrantar, irmão do Lorde. Venho encontrar com ele...)

--- Shaelysti sai os jhal, tia mos --- todos fazem uma pequena reverência ao visitante.
(Seja bem-vindo em nossas terras, meu Senhor)

Os homens acompanharam Nihal até o vilarejo, antes escondido pelo feitiço da floresta, que fazia vez de muralha e barreira contra invasores. Só era possível encontrá-lo com magia, ou caso os sentinelas assim permitissem. Foram recebidos por um elfo de mantos azulados que cobriam dos ombros até as canelas, deixando ver apenas um par de botas bem trabalhadas.

--- Shar pai shi cali caesi ?! Ais sar eil’s sor or eil kae are! --- o elfo disse animado.
(O que temos aqui ?! Se não é um elfo velho e viado!)

--- Eil ai mi eil aer sosaer os seil sai shi thelia !
(E eu vejo um elfo cansado de tentar ser engraçado !)

--- Nihal, jhyl sosti bai mi. Cyrn cali a shael ?
(Nihal, quanto tempo. Como andas ?)

--- Shaes... shaes.
(Bem… bem.)

Os dois elfos entrelaçam os punhos, se abraçando. Nihallinael pergunta:

--- Tyr o saji ti sai tia shyraes, Yontariel ?
(Pode me levar até meu irmão, Yontariel ?)

--- Vol byrn ! --- e, se voltando para os sentinelas, Yontariel diz --- Sal o, mos.
(É pra já! --------------------------------------------------------------------- Obrigado, senhores.)

Yontariel era um mago e leal amigo de Varnilael. Os dois haviam aprendido as artes arcanas com o mesmo mentor a algumas décadas e, desde então, tornaram-se inseparáveis. Quando o irmão de Nihal tornou-se Lorde, após a morte de seu pai, convocou Yontariel para fazer parte dos Lobos da Noite, a guarda pessoal do Lorde.

Com alguns sussuros e gestos arcanos, uma pequena cortina de ar os envolveu, arrastando folhas e poeira pelo local e, quando os dois se deram conta, já estavam em um local diferente. Um cômodo retangular, com duas portas, mas sem janelas e, no teto, uma abertura que permitia que os raios da lua iluminassem o ambiente. Algumas cadeiras, uma escrivaninha, algumas estantes e uma cama denunciavam o que parecia ser um quarto rústico. De onde materializou, não fosse sua visão noturna, seria difícil de perceber o homem sentado em uma cadeira e, ao seu lado, o enorme lobo branco que descansava a cabeça em sua perna. Ante a chegada dos dois, o homem se levantou, e cruzou punhos com Nihallinael, abraçando-o logo em seguida. Possuia feição semelhante às do irmão, talvez com um rosto mais delicado e traços mais finos... digno de um Lorde. Do lado esquerdo do rosto, usava uma máscara, cobrindo uma cicatriz proveniente de um ritual ao qual foi submetido quando criança.



--- Shyraes... jhyl sosti bai mi.
(Irmão... quanto tempo.)

--- Sael os, Varnilael...
(Dez anos, Varnilael...)

--- Ai eis kar o tasti shas... shi cali ei jhyr sai sar. Saer ti cyrn shar os bysi.
(Estou feliz que tenha retornado... temos muito a conversar. Conte-me como foram suas viagens.)

--- Ai cali thyl si shyl o cali vaezeraer...
(Eu encontrei o livro que me mandou procurar...)

--- Shaesi shar air ?
(Onde estava ?)

--- Thos, air shar ail Eä'Singer… sher air shar tylaer sai si Shys’Colys
(Primeiro, estava em Eä'Singer... mas foi movido para os Reinos da Fronteira)

--- Sar’m shia o cali taer Elandil ? --- o Lorde esboçou um risinho pelo canto da boca.
( Foi assim que encontrou com Elandil ?)

--- Or, si byrdaer cosaer eil eirarol sai cor ti eil vaeroli si shyl. Ci malaer ti.
(Sim, os nobres contrataram um assassino para me matar e recuperar o livro. Ele me salvou.)

Varnilael pareceu um tanto quanto desapontado, mas Nihal lhe entregou o livro de sua mala. Era um tomo de um palmo de grossura, uma capa de pele de animal bastante rústica e já judiada pelo tempo. Não trazia nenhuma inscrição que pudesse identificá-lo, mas só de tocar no material, era possivel perceber que tratavasse de um dos mais antigos livros já escritos... se não fosse o mais antigo.

--- Eisi o mesi sar shar’m shorael air sia, shyraes ?
(Tem certeza de que o que está escrito no livro é verdade, irmão ?)

--- Paerolonaraelia. Ais air’m sia sar Eä val shar ailardoraer...
(Absolutamente, Nihal. Se for verdade que o plano de Eä não era inabita...)

BOOOMMMM !!!, uma explosão ecoou por toda a floresta, seguido de gritos. Poucos segundos depois, das sombras que cobriam o cômodo, sete homens surgiram, juntamente com sete lobos, semelhantes ao lobo do Lorde.

--- Shar shar sar, Gallënrard ? --- Varnilael perguntou ao homem mais próximo que surgira.
(O que foi isso, Gallënrard ?)

--- Eil eiras, tia Jhys... Käerins.
(Um ataque, meu Lorde... Käerins)

--- Mor... cyrn por si cyrn shi shaesi caesi?
(Droga... como descobriram que estavamos aqui ?!)

--- Shi pyl’s cyrn… byrn air’s si sosti, mos… shi kyrae saki o orae caesi.
(Não sabemos... mas agora não é hora, senhor... temos que tirá-lo daqui.)

Dois dos guardas se aproximaram do Lorde, realizaram gestos arcanos e desenharam um círculo com tinta no chão. Antes do teleporte se completar, Varnilael gritou:

--- Yontariel... saji tasi os tia shyraes !
(Yontariel... cuide de meu irmão !)

O elfo acenou com a cabeça, sacando seu cajado --- Pai o mor cyrn cyrn sai thol, Nihal ?
(Ainda sabe lutar, Nihal ?)

--- O pyl’s aelael aistandroli, or tal... --- disse sacando uma cimitarra e um cajado e seguindo o mago para fora da construção.
(Você nem imagina, velhote...)

Nihal se assustou com a quantidade dos invasores. A vila estava em caos... era pequena e, por mais que estivesse localizada nas proximidades da fronteira com o território dos Käerins, não estava preparada para um ataque daquele tamanho. Ele e Yontariel trocaram golpes e magias contra um grupo que, assim que sairam da casa, o atacaram. Os inimigos eram habilidosos, mas o mago conjurou uma magia em Nihal, aumentando sua agilidade. O cajado e a cimitarra do elfo realizavam arcos rápidos, cortando e machucando os invasores que tombavam a cada ataque do guerreiro. Antes de sair em viagem, Nihallinael sempre fora um ótimo lutador... mas, agora que tinha viajado por Eä, aprendera a ser letal. Havia aperfeiçoado o combate da cimitarra e cajado, tornando-se um dos melhores em tal arte.

Estavam para terminar o confronto, quando Yontariel caiu vítima de um golpe na perna de uma elfa, que parecia ser a líder do grupo. Porte de guerreira, carregava uma espada estranha, banhada de sangue, cabelos ruivos e negros e uma pele de tom roxo avermelhado. Possuia uma voz rouca e firme que dava arrepios:



--- Ais Ai shaesi o, Ai shyr’s mae ail os shae... vaeror.
(Se eu fosse vocês, eu não ficaria no nosso caminho... lindinhos.)

Nihal paralizado com a presença da mulher, mal percebeu a pancada que recebeu na cabeça do elfo a suas costas... Caiu desmaiado aos pés da elfa.

O Lorde Élfico (Saga de Nihal parte 1)




Elandil observava as casas élficas construídas em simbiose com a enorme árvore. Estava sentado em um trono de madeira. Voltou-se ao invasor :

--- Então você vem às nossas florestas e tenta assassinar um de nossa raça... humano --- a última palavra saiu com um enorme desprezo pelo homem ajoelhado.

--- Mas ... mas...

--- Não pedi que falasse ! --- o elfo interrompe, levantando-se. Escondendo o corpo esbelto e musculoso, trajava uma impecável armadura verde e dourada com uma árvore trabalhada no peitoral. Uma coroa de madeira adornava os cabelos loiros e, em sua cintura, um sabre de lâmina marrom com alguns detalhes em um verde pulsante, denunciava o guerreiro que fazia papel de rei.



Se aproximou do homem, de mãos presas pela madeira retorcida, e levantou-o pela gola da camisa. Elandil o olhou nos olhos e disse:

--- O que fazia em meu território, inseto ?!

--- Eu... eu fui contratado... para... --- gaguejava de medo --- ... para capturar o elfo de cabelos escuros, senhor. Ele... ele roubou diversos nobres em meu país, senhor.



O que ele dizia era verdade. Nihallinael, o elfo de cabelos escuros, havia realizado uma série de roubos nos Reinos da Fronteira e os nobres contrataram um mercenário para dar cabo do ladrão.
Podia não ter o mesmo sangue que Elandil, mas ambos eram elfos. E, desde o início, com ou sem a guerra civil, elfos protegiam elfos.

--- E quem lhe deu a permissão de adentrar em meu território, pária, e ainda caçar um de minha raça?

--- Ninguém, senhor...

--- Ótimo... então sabes porque morrerá... --- Elandil saca seu sabre, fincando na barriga do mercenário. Do chão de madeira, raízes brotam enredando-se pelas pernas do mercenário. A cor da pele do homem passa do marrom para o cinza em poucos segundos. Momentos depois, o rei retirou a arma, deixando apenas a casca seca que antes fora o humano. Voltou-se para outro elfo:

--- Pai byr saji eir mysti kaelaelaer, Nihallinael. Os valaer eisi byr eilor os thol. Taji mesi sor aelael tysti sai tia shyraes’m aes.
(Não tome isto como uma gentileza, Nihallinael. Nossas raças não são aliadas ou amigas... apenas certifique-se de que esse evento chegará aos ouvidos de meu irmão.)

--- Pai byr shysia, Elandil. Ai shor taji mesi Varnilael cyrn os colaer... Sal o baesia tes.
(Não se preocupe, Elandil. Farei com que Varnilael saiba de sua bondade... muito obrigado.)

--- Byrn kai ! Ai’jh cali mysti kes aerys o sai si shysaes.
(Agora vá ! Alguns guardas vão te acompanhar até a fronteira.)

Nihallinael fez uma reverência ao rei e se retirou, dizendo:

--- Tae si mas ailestolari os maer !
(Que as estrelas iluminem seus passos !)

--- Tae si mel kedi os... --- respondeu, virando-se de costas.
(Que o sol guie os seus…)

Observava um grande vitral magicamente esculpido na parede de madeira do palácio sob as árvores. A imagem no vidro mostrava uma árvore com uma copa rica de folhas, a mesma imagem estampada em sua armadura, o brasão de sua raça, os Ellärin, também conhecido pelos povos comuns como elfos-das-árvores. Ao lado dela, havia também outros quatro brasões...

Uma árvore totalmente sem folhas, exibindo apenas os galhos secos. Eram os Fäerin, os elfos de cabelos brancos...

Uma lua, em sua fase crescente. Eram os Lómërin, os elfos-da-noite, raça de Nihallinael.

Uma árvore de ponta cabeça, lançando suas raízes vermelhas acima do solo. Eram os Käerin, os elfos de cabelos vermelhos...

E, por último, uma gota d’água azulada. Eram os Ethelärin, elfos que vivam próximos aos rios e mares.

Cinco raças... e uma guerra aparentemente interminável. Alianças eram tramadas e logo desmanchadas após cada batalha ganha ou perdida. Elandil questionava-se sobre o real motivo dos confrontos...

Mas... o mais importante era que com ou sem a guerra interna... todos eram um... todos eram elfos !

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Vicent, O Líder dos Doze

A existência dá voltas. Uma vez estamos por cima, outra por baixo, mas o destino é inexorável e irá lhe achar, nem que o mundo tenha que ser destruído em pedaços.

Vicent era um garoto, alegre, puro, mas um dia as coisas iam mudar.

-- Mãe quero ir brincar com os outros meninos, posso? – a cara de santo destruía todas as fracas defesas da mãe que amava seu filho, e o via como um pequeno gênio, apesar de não entender muito o que isso significava.

-- Vá filho.—o menino já sai pela porta antes mesmo de escutar o resto – VOLTE PARA A JANTA!!!

-- CLARO! – o sorriso era radiante, e o pobre coração de mãe se derreteu, e voltou aos afazeres tão feliz quanto o menino.

Muitos anos foram belos, e cheios de alegria, Vincent brincava entre as crianças e conversava entre os adultos, sobre coisas que muitos anciões não ousariam comentar, e o menino desenvolvia de tal forma que a vila inteira o admirava.

-- Mas Sr Boules, é impossível pensar em magia, sem antes pensar na composição do cosmos ou quem são os deuses. Até mesmo a magia arcana está presa aos paradigmas de limitações criadas pela meio que ela está inserida.

Os senhores reunidos só ficavam cada vez mais chocados conforme a discussão prosseguia, e ninguém conseguia quebrar os argumentos do menino, que tinha só 7 anos.

-- Mas veja, Vincent, a magia divina é limitada pelo Deus que deu poder a seu clérigo para realizar os seus milagres. A magia arcana é livre... de forma alguma existem limites.

--Não estou falando de limites impostos, mas sim de limites naturais, intrínsecos. Onde a própria magia não pode superar.

O gosto pela argumentação e pela conversa, assim como pelas brincadeiras, travessuras e descobertas, era o que guiava a vida do menino. Mas um dia as coisas iriam mudar.

Existia uma pequena caverna perto de sua casa, ninguém lhe dera bola, nem os deuses, nem humanos, nem monstros, até insetos a ignoravam. Até mesmo a própria poeira e o próprio tempo decidiram ficar fora da caverna. E o menino a achara.



Uma força o puxou para dentro do espaço, algo que ele não compreendia o guiava. Depois de entrar na caverna nunca mais fora o mesmo. A caverna passara a ser sua vida. O menino só a via na cabeça. Amigos, família, tempo, brinquedos, livros, brincadeiras, nada se comparava a caverna, para ele a caverna era tudo e ao mesmo tempo a caverna estava vazia.

A força da caverna sobre Vicent era estranha, o chamava, o buscava. No fim, o menino mal comia, respirava ou vivia.

-- Vicent volte para o jantar. – avisa a mãe que em poucos meses ganhara uma bela cabeleira branca. O próprio filho lhe dava pesadelos, aqueles olhos que divagavam para o infinito a assustava.

-- Claro Dulce. – o menino não a chamava de mãe fazia o mesmo número de meses.

Os pés descalços correm pelos caminhos irregulares, mesmo com pedras afiadas não pisavam com menos convicção. Até mesmo se feridos continuavam do mesmo jeito. Acabavam por parar na frente de uma viela da vila, ninguém entrava nela nem pensava em olhar para ela, mas o menino corria para lá levado por seus pés incansáveis.

Aquela manha as coisas iam mudar, mas o menino não sabia, afinal mal pensava.

No meio da pequena caverna estava um buraco, claramente cavado a mão, as marcas de unhas e resquícios de sangue por toda a sua borda. Rapidamente os pés dirigem o menino para a borda do buraco e ele desce para o fundo.

Um sorriso brilha em seus lábios, mas é um sorriso louco, demente, sem verdadeira felicidade. Ele serve para mascarar a dor e o ódio que o menino sentia durante aquelas horas. O ódio era para a terra que o separava do seu objetivo, apesar dele nem saber que tinha um.

O sol começara a descer pelo horizonte quando o corpo para o trabalho maquinal. E o menino ganha a consciência que perdera a tantas semanas.

-- O que..... – uma dor terrível sobe os braços e o resto da pergunta é perdida no meio do grito de dor. Ao olhas para baixo o menino vê seus dedos em carne viva quase enxergando um osso ou outro. Mas o que realmente lhe chama a atenção não são os pedaços desfigurados de carne.

Entre as duas mãos marrons e vermelhas, estava um medalhão.



Entre ele tomar consciência do medalhão e o tremor foram alguns segundos. Um terremoto gigantesco assolava toda a região enquanto no céu uma grande nuvem negra se formava. Vicent olha para fora de sua caverna, se é que fora realmente ele que estava a cavar todos esses meses, e o que vê o marcou para toda a sua vida.

Em poucos minutos uma nova montanha apareceu no horizonte já marcado pela grande cadeia montanhosa que circundava o fértil platô onde a sua pequena vila estava.

Assustado tentou voltar para casa, mas uma forte barreira o prende dentro da caverna.

O medalhão, em suas mãos brilhava azul, e o tremor dentro da caverna parecia aumentar a cada segundo. Vincent sentia seu coração acelarar e mal percebeu quando, do medalhão, inscrições e desenhos se projetaram para sua mão, subindo em direção ao braço e ombro. Um idioma antigo, talvez até mais antigo que os próprios deuses... tomavam conta de todo seu corpo. Suas pupilas estavam dilatadas e um brilho da mesma cor do medalhão emanava de seus globos oculares.

A energia do local parecia se agitar e emanar em todas as direções. Os habitantes do vilarejo sentiram suas forças serem sugadas para fora de seus corpos e, do peito de cada um, surgiram pequenas esferas brilhantes que rumavam em direção ao céu e se uniam, dando forma a uma enorma esfera azulada. Semelhantemente, com os animais, insetos e plantas do local ocorreu o mesmo, apenas alimentando ainda mais a forma que flutuava acima de tudo.

Dentro da caverna, Vincent mal conseguia se segurar. O terremoto parecia aumentar e a gravidade parecia estar invertida. Os corpos de todos os cidadãos, animais, casas, árvores... tudo era atraído para a massa de energia. Montanhas se ergueram no processo, como se a natureza tentasse de alguma forma, cercar aquele tumor em forma de planalto. A esfera crescia... crescia... até que explodiu.

Não em forma de fogo e calor, mas como água e gelo. O vale foi alagado e a caverna de Vincent foi inundada. O corpo do garoto sugou a energia da água, junto com os litros que entravam por sua boca. Em defesa, seu cérebro fez com que desmaiasse.





Acordou dias depois... sob uma superfície gelada. Sobre o vale, havia se formado um enorme lago congelado. Toda a força vital da região havia sido sugada... e o garoto sentia tal energia dentro de si. Apenas uma pergunta passou por sua cabeça:





”O que foi que eu fiz...?”

Mas não fora o fim. Alguns dias depois, quase morto de fome Vincent finalmente consegue escapar do lago congelado para se descobrir preso pelas montanhas, apesar do cansaço e da fome seu corpo não pedia por descanso, sua marcha parecia interminável, mas sempre que se sentia prestes sucumbir de fome ou de frio uma força gigantesca o envolvia e dava forças para continuar.

Algumas semanas depois, o menino foi encontrado a beira de uma estrada. Na encosta da montanha.

 



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"Ashes To Ashes, Dust To Dust" 


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As montanhas olhavam para o menino e o menino olhava as montanhas. Ambos haviam mudado muito nas últimas semanas, não eram mais os mesmos, porém apenas o menino podia possuir remorso, dor e tristeza, e apenas ele estava perdido.

Mais alguns dias se passaram, Vicent andara muito em torno das montanhas, mas nunca voltara para a imensidão gelada, ela só o aterrorizava em sonhos. Sempre que escurecia, uma pequena menina vinha buscá-lo no lugar onde ele olhava para o Lago Congelado.



--Vicent, mamãe e papai estão chamando. – a pequena, de olhos verdes, cabelos loiros, vestida com roupas bem feitas, tinha um triste sorriso no rosto, como se compreendesse o pesar do menino mais velho. – Vamos – como sempre, fora ignorada. Vicent estava em seu mundo pessoal, era difícil de arrancá-lo para a realidade. Ela levemente puxou a manga da camisa feita de peles que o menino usava. – Vamos.

--Claro, Camie, claro. – a voz praticamente morta, quase inaudível saiu pelos lábios já ressecados.

-- Venha.—a menina, sem soltar a manga da camiseta, o levou pelo caminho pedregoso e incerto. Passaram por uma pequena floresta, que margeava o rio que havia recentemente surgido da imensidão gelada. Alguns disseram que as montanhas chorariam para sempre, em luto a tudo de belo que havia desaparecido.

Ambos sairam do outro lado da floresta, era fácil observar que a menina, menor que Vicent, deveria ter pelo menos nove verões. O menino de onze verões parecia semi vivo, o olhar morto e perdido no horizonte às vezes parava sobre os belos cachos loiros da menina, às vezes olhava para chão, perdido em pensamentos que a própria mente desconhecia, talvez um sentimento a muito perdido ou uma lembrança doce.

Uma pequena ponte de madeira os separava da vila que Vicent fora acolhido e onde Camie nascera. Apesar de pequena, se via a beleza construída com carinho e amor. As ruas até mesmo possuíam pedras, que levemente brancas iluminavam o caminho mesmo ao nascer da lua. A magia fazia parte do local, apesar de não haver nenhuma escola, praticamente todos os moradores eram hábeis mágicos, que utilizavam seus poderes de forma a melhorar a vida de todos.

Camie pronunciou algumas palavras enquanto andavam, mas, de tão tímidas e abafadas pelo próprio medo de dizê-las, nem mesmo ela escutou, quanto mais o menino, que perdia seu olhar na lua. A menina parou a frente de uma casa, dentro as luzes flutuavam e dançavam, comandadas por suas irmãs mais novas.

-- Linda a lua, não? 



Antes da menina poder responder, uma bela mulher saiu pela porta e puxou ambos para dentro.

-- Está ficando frio, venham. – Os cabelos eram da mesma cor que Camie, mesmos cachos, mesma cor de pele. A mãe da menina era o que um dia Camie seria, uma bela mãe, feliz, e invejada por todas as outras mulheres.

Se ao menos Vicent não tivesse entrado em suas vidas.

A noite era tão longa quanto o dia, pelo menos para Vincent, os pensamentos continuavam a persegui-lo, ocupando sua mente.

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--Mãe quero comer batatas hoje!

--Claro filho. Mas você terá que comprá-las na venda do Miguel.—Um grande sorriso branco surgiram nos lábios da afável mãe.

--Sim senhora.—responde Vicent que logo pega algumas moedas e corre para fora de casa, vendo o lindo céu azul, um céu só visto do topo das montanhas.

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Vicent sorriu de um jeito que ele nem lembrava direito. Apenas a lua e o Deus da Noite viram a doçura em seus lábios. Assim ele ia passando seus dias e suas noites, lembrando de seu passado destruído, apenas voltando para a realidade quando necessário.

Em uma tarde qualquer, alguns meses depois, Camie não apareceu na mesma hora de sempre. Mesmo em seu estado de semi-consciência algo gritou para ele correr. “Corra ou nunca mais a verá.” Suas pernas começaram a se mover em uma velocidade que nos últimos tempos só havia feito em lembranças.

A floresta voou na frente de seus olhos, enquanto seu corpo pulava raízes e se abaixava para fugir dos galhos. Muitos pássaros voaram na direção oposta e muitos animais passaram pelo seu caminho na mesma direção. O campo surgiu a sua frente, depois dele, a fumaça subia veloz aos céus.



Um grande número de pessoas corria para fora da cidade, que ardia em um fogo quase negro. Vicent viu o grande dragão que assolava a cidade, os olhos vermelhos brilhavam entre as colunas de fumaça que encobriam o céu. A sua frente, avistou Camie correndo e moveu-se desesperadamente em direção à ponte que a menina iria atravessar em poucos segundos.

-- VICENT!! VICENT!!! ME AJUDA!!! SOCORROOOOOO!!! --- a menina gritava assustada enquanto corria, mas o chão embebido em sangue queimado e corpos torrados tornava quase impossível fazê-lo com perícia. Ela acabou por tropeçar em um corpo carbonizado, seu pé destruiu a pele e a carne que eram apenas carvão, chegando ao osso que não havia se desfeito. Seu corpo continua, como se uma ausência de gravidade fosse impedi-la de parar, por alguns milésimos de segundo a expressão se torna espanto e volta a ser de desespero. Camie cai por sobre outro corpo, reconhece as feições desfiguradas de seu pai, que minutos antes havia saído para ver qual era a confusão na cidade.

-- PAIIIIII!!!! PAIII!!!!! – as lágrimas fluíam sem parar e não deixavam chance para o resto do corpo se mover, o choque a paralisou, seus últimos gritos chamaram a atenção do dragão, que voou de suas colunas de fumaça.

Grande e imponente, mais negro que o próprio céu sem estrelas, sua cor era manchada por sombras vermelhas, do sangue de suas vítimas. Suas asas eram cinzas, de um tom que predizia a desgraça e a miséria que ele levava a tudo e a todos.

Vicent correu ainda mais. Suas pernas gritaram de dor, seus músculos berraram por oxigênio, seu coração trabalhou o máximo que podia, mas nada pareceu adiantar. O menino ainda corria menos do que o dragão podia voar.

-- CAMIEEEE!!! CAMIEEE!!! VENHA!!! VENHA NA MINHA DIREÇÃO!!! CORRAAAAAAAAA!!!

A menina reagiu, porém fora tarde demais, os deuses queriam sua jovem alma para ocupar um lugar em seus planos. Uma mancha negra passou pelo campo de visão de Vicent e Camie desapareceu para sempre de sua vida. O dragão partiu, após comer seu último petisco, deixando uma cidade desolada e destruída.

-- DROGAAAA!!!! DROGAAAA!!! MALDITOOOO!!! FILHO DA PUTA!!! DESGRAÇADOOO!!! – Vicent socava o chão enquanto gritava e chorava, mais uma vez havia sido inútil, sem capacidade de proteger ninguém. Isso corroia sua alma. A dor de perder tudo novamente o acordou para um desejo.

-- Eu vou me tornar forte. Forte o suficiente ... – soluçava enquanto bradava para os deuses sua promessa. -- para conseguir ... proteger todos. – desabando em um profundo choro desesperado. O voto feito nessa tarde se tornaria o guia da vida de Vicent durante muitos anos.




Um sábio um dia disse que:

“Algumas convicções são tão fortes que o mundo deve mudar para acomodá-las”

Vicent o provaria certo, mais de uma vez.





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"Sobre Novos Caminhos"


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Os ombros se tornariam muralhas, as costas definidas pelo constante balançar das espadas, os braços fortes de tanto cortar e perfurar, os olhos profundos de cor azul, perdidos em pensamentos. Vicent mudaria, seria um guerreiro... um forte guerreiro.

A dor da perda o perseguira. Perdido em sua angústia e em seu medo de amar novamente, o menino ganhara a estrada. Dos escombros da vila destruída pelo Dragão retirara uma armadura, muito grande para ele, a qual adaptou tirando algumas peças, e um par de espadas. Uma delas era azul, sua lâmina parecia gelo, a outra negra. “Gelo e Morte” era o que o menino conhecia, mas logo conheceria o gosto do sangue, a dor pela luta, a fome e muitas coisas.



A vila queimada, destruída pelo fogo negro, fora deixada para traz junto com o resto de suas lágrimas. As mãos calejadas, quase em carne viva, delatavam as horas de trabalho árduo, nenhum corpo fora deixado sem sepultura. Alguns dias depois ele se encontraria com a realidade de um andarilho.

-- Olha chefe, o menino tem duas espadas e uma boa armadura.—o bandido era meio torto, sua cabeça não ficava alinhada com o corpo, como se tivesse levado uma pancada e nunca mais tivesse voltado para o lugar.

-- Sim, eu estou vendo seu cabeça mole.—o homem não era especialmente forte ou alto, mas era coberto de cicatrizes.

-- Saiam do meu caminho. – a voz saiu meio fraca.

-- Hahahaha. Chefe ele acha que pode passar. – o bandido se aproximou de Vicent, que estava parado no meio da estrada, cercado pela pequena trupe de bandidos. – Entenda pequeno, ESSA estrada é nossa. Você deve pagar um tributo para passar. – uma pausa enquanto as risadas dos outros capangas ecoavam — A armadura e as espadas são um pequeno preço por sua vida, não acha?

Vicent colocou as mãos sobre as espadas.

-- Vamos, me passe elas. – o estranho bandido torto sorriu e esticou as mãos.

-- Não dessa vez. – um olhar meio louco tomou o rosto do jovem que sacou as espadas arrancando fora ambos os braços do bandido a sua frente.

-- MERDA! ELE ARRANCOU OS BRAÇOS DO ROY! PEGUEM ELES, RAPAZES ! – O líder rapidamente sacou seu arco e junto com os outros tentou uma falha investida.

“Vamos meu garoto mate todos! TODOS merecem MORRER.” Só a insanidade falava a Vincent.

Como um deus da guerra e da loucura, o menino trucidou todos. O primeiro que se aproximara com uma espada curta nunca mais viu o mundo, Morte passou por suas retinas, o deixando caído no chão e se contorcendo. O segundo teve mais sorte em seu ataque, sua espada escorregou entre as placas da armadura improvisada e mordeu uma costela do menino, mas a retribuição foi rápida. Gelo mordeu a perna do bandido, seguida por Morte que se enfincou em seu coração. O sangue escorreu pela lamina até o punho que Vicent segurava.

-- Ele é forte!

-- Não se amedrontem! É APENAS UMA CRIANÇA! – uma flecha voou parando na armadura.

Os últimos três bandidos de pé olharam para o menino que avançava, sem medo, sem dor, sem hesitação. Eles tinham medo e perderam para ele. Talvez se tivessem atacados juntos, ou pelo menos não tivessem corrido desesperadamente, estariam vivos. Gelo e Morte tiraram a vida dos três, como preço por sua covardia.

“Muito BOM, ÓTIMO!”, a voz da insanidade congratulava Vicent.

A estrada ficou manchada de sangue, com quatro corpos e um inválido que nunca mais conseguiria falar ou ver. Vincent continuou sua jornada, procurando destruir tudo a sua frente. Em pouco tempo os boatos se espalharam. Um menino que, sozinho, havia destruído um acampamento Orc, ou o menino que havia sobrevivido às cavernas dos formians. O mundo começara a saber quem era Vincent, todos tremiam de medo.

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-- Meu jovem! Talvez você tenha uma moeda para um pobre herói de guerra? – o homem estava atirado ao barro. Sua barba por fazer, o que fora uma dia pernas jogadas a sua frente, secas e mortas.

-- Não. – um olhar perfurou o mendigo que estremeceu, se escondendo atrás de seus próprios braços.

Mais uma das cidades destruídas pelas guerras que assolavam todos os lugares. Sem países ou lei, as terras sofriam com a desgraça de nobres egoístas, que mandavam seus exércitos para batalhar por meros metros de terras. Apenas desculpas para haver sangue e morte.

O castelo subia imponente aos céus, a bela cor de suas pedras não era vista em nenhum outro lugar, o verde esmeralda, refletia a luz do sol. O menino, já guerreiro, andava entre as pessoas na região do mercado quando avistou uma pequena loja do outro lado da praça. A sua porta estavam o ferreiro e seu filho, um menino com menos de 10 verões, ambos eram arrastados por um grupo de soldados.

-- Vamos, ande logo, seu velho burro. – o brutamonte puxava o ferreiro, que já tinha cabelos brancos. Um grande bigode da mesma cor dava-lhe a expressão no rosto, suas sobrancelhas igualmente brancas ajudavam no olhar de desespero.

-- Mas eu não fiz nada! – ele lutava contra o puxão do soldado.

-- Não quero saber, nos mandaram te pegar e queimar a sua loja. VAMOS! Ande antes que eu fique irritado. – um dos soldados portava uma tocha, a qual ele alegremente balançava por sobre a cabeça do menino que lutava contra seus carrascos.

-- ME SOLTE!! ME SOLTE, SEU FILHO DE UMA PORCA COXA! – os olhos verdes brilhavam de raiva.

-- Cale a boca. – a cabeça do menino vira repentinamente e cai sobre o próprio peso, um filete de sangue sai de seus lábios, roxos e inchados. – Caramba, filho de uma puta, espero que não tenha morrido, vai ser difícil explicar para o capitão.

-- SEU CACHORRO!!! COMEDOR DE MERDA!!! LARGUEM O MEU FILHO!! – O velho se debate com mais fúria, porém não se liberta dos guardas.

Enquanto assistia a cena, uma inquietação tomou o coração de Vicent. A dor da perda, da fraqueza e da incapacidade de proteger seus amados saltou para sua boca, que ficou seca, seu coração começou a bater mais forte, o suor veio à pele e a solução para acalmar tais sentimentos foi intervir.

-- Deixem o menino ir, soltem o velho! – um olhar furioso dominava os olhos do jovem parado a frente dos soldados, as mãos estavam no punho de suas duas espadas. – Vamos! Eu estou esperando.

-- Quem você pensa que é?! Não ache que vamos nos curvar para um mero viajante! Um vagabundo que chega a nossa cidade! – o líder do grupo respondeu. No mesmo instante Gelo saio de sua bainha.

-- Não me obrigue a fazê-los largar. – Morte foi sacada em um movimento rápido demais para os outros a verem saindo da bainha, só a viram quando ela estava parada ao lado de seu dono.

-- Homens prendam esse vagabundo! -- o líder do grupo sorri friamente. -- Aqui existem leis, moleque! 

Os movimentos dos soldados pareciam estar em câmera lenta, Vincent rapidamente os desarmou, não precisou de muita força, não machucou nenhum dos quatro soldados que avançaram por sobre ele.

-- Não sou um vagabundo, senhor. – um olhar calmo fitou o sargento. – Desistam e saiam da minha frente. Já derramei sangue demais hoje. 

Finalmente o homem percebeu a armadura ensangüentada, de um vermelho estranho, quase preto. Notou o buraco na mesma, e o sangue, que, vermelho, dava cor a aquela parte da armadura. O jovem havia desarmado alguns dos melhores homens da guarda da cidade, estando machucado e semi-vivo!

-- Vamos! Estou esperando! – a inquietação começara a dominar a face de Vincent.

-- Seu bando de molengas! Ele está ferido! Como não conseguem prendê-lo?! 
Largando o velho e o menino, outros dois soldados se juntaram ao avanço, que novamente falhou. Todos desarmados novamente e comendo poeira.

-- Na próxima vez vou usar as espadas. – ambas estavam levemente manchadas das mesmas cores que a armadura, Gelo tinha uma grande trinca branca que passava por todo seu comprimento, Morte possuía uma trinca vermelha como sangue.

-- Capitão! – um dos soldados ainda estirado no chão grita, e aponta para Vicent. Finalmente notaram a grande linha de sangue que vertia de suas roupas. O sangue vermelho, límpido, escorria pelo fim de suas botas, o jovem estava morrendo.

Olhando em volta, o capitão viu a trilha de pegadas de sangue que a bota deixara, e algo passou por sua mente.

“Se esse filho da puta está sangrando tanto como podo enfrentar seis homens sozinho? E ainda sem ferir nenhum deles!”

-- Menino, você está sangrando, nos deixe levar o ferreiro e o filho dele e nada vai acontecer com você!

-- Não! – Naquele momento o soldado finalmente entendeu o olhar de Vicent, não era de raiva, mas dor. Uma dor que a maioria dos homens sucumbiria e não conseguiria lutar. – Vocês ... – A voz lhe falha.—Irão.... deixar eles ir, ou sucumbirão.... sob minha espada. 

-- Homens! Recuar! – uma estranha expressão havia tomado a face do líder do grupo. Vicent não sabia ao certo o que queria dizer, além do mais, a vista estava tão turva que mal enxergava seus adversários.

-- Mas...! – um soldado tentou protestar.

-- CALE A BOCA! Você segue ordens! LEVANTE-SE e vamos sair dessa rua! 

Assim que os soldados viraram uma esquina qualquer, humilhados pela derrota, o jovem foi ao chão, perdendo a consciência.