sexta-feira, 29 de julho de 2011

Kallistria, a cidade dos Imortais

Meu pescoço ainda ardia pelo terceiro dia seguido.

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Saímos da fronteira norte de Kamigawa a uma ou duas semanas com as palavras do Shogun em nossas cabeças... ”Rumem norte e relatem o que encontrarem além da fronteira”, no momento, pareciam lindas palavras. Cumprir uma ordem do escolhido dos Deuses não era apenas um dever, mas um dever que qualquer um do Reino teria o prazer de realizar... grande erro... Grande Norte.

Após o nono ou décimo dia de viagem, encontramos um acampamento, provavelmente o posto mais próximo de toda a fronteira. Troncos de árvores com as pontas afiadas formavam uma paliçada por volta de toda a muralha, feita também do mesmo material. Com portões para o sul e para o norte, era vigiada por arqueiros que andavam pelos suportes construídos pelo lado interno da estrutura. Em uma torre alta, no centro da fortificação, outros dois vigiavam todo o território circundante. Além disso, víamos também mais três ou quatro construções que deveriam servir de dormitório e a casa do líder ou comandante do bando.

Em silêncio, fiz sinal ao grupo, enquanto Souta, o cartógrafo, media os ângulos das estrelas com suas bugigangas e anotava no mapa que carregava, e Jiro murmurava seus encantos sobre todos, nos tornando tão visíveis quanto a leve brisa que remexia a vegetação rasteira. Nos afastamos não mais do que um ou dois quilômetros do acampamento e seguimos viagem.

No décimo segundo dia, Ryota chamou minha atenção para o horizonte. Pelo caminho que tinhamos vindo, avistamos um grupo a cavalo rumando em nossa direção. “Mas co....”, a minha frase estancou interrompida no ar, enquanto eu olhava para o chão árido pelo qual viajávamos. Em meio a poeira e areia, havia pegadas, que por menores que fossem na imensidão das terras, serviam de sinalizador e alarme para os perseguidores. ”Idiotas...”, esbravejei com o grupo, “... não falei para tomarem cuidado com suas pegadas !? Agora vamos... suas vidas dependem de suas pernas”, olhei novamente para o horizonte. Sendo otimista, um ou dois dias de viagem a cavalo... correr apenas lhes retardaria algumas horas, mas era tudo o que podíamos fazer.

Corremos por um dia inteiro, parando apenas dez segundos a cada cinco horas. Na madrugada do dia seguinte, com as tochas se aproximando cada vez mais e, junto com elas, o medo e a morte, os quilômetros percorridos cobraram seu preço. Kaji foi o primeiro a cair, seguido de Souta, Jiro, Ryota e, por último, eu mesmo. Fechei os olhos e mal me lembro de ter adormecido... murmurei um ”Foi bom conhecê-los, rapazes...”, que mal saiu da boca.

Ouvi o trote dos cavalos, o idioma gutural e uivado das criaturas... abri um de meus olhos e avistei alguns gnolls e um ou outro hobgoblin. Amaldiçoei-os e amaldiçoei as circunstâncias... não seriam pário para um samurai se estivesse em melhores condições. Ri da bravata, como quem ria para a morte... ”Não... hoje não ?... ou talvez sim, Shinigami”. Vi também quando a noite tornou-se mais escura, escondendo as estrelas e tornando inútil a visão dos nossos perseguidores.

Um deles, que carregava Ryota até o cavalo mais próximo, grunhiu algo e, logo depois, ouviu-se um gemido abafado seguido de um baque seco, que inferi sendo o corpo do kamiko¹ indo ao chão. Ao redor, ouvi sons que me fizeram lembrar das alfaiatarias de Kamigawa, onde os mestres da seda a cortam com seus instrumentos. A única diferença era que os instrumentos deveriam ser armas e a seda... o pescoço das criaturas. Ouvi uma voz diferente, falando em um idioma tão diferente quanto... senti alguém me erguer e fui posto em um cavalo. Adormeci novamente...

Despertei em uma cama de palha improvisada... os olhos, ainda se acostumando a claridade do cômodo, rodearam o ambiente tentando reconhecer os vultos embaçados. Uma mulher se aproximou de mim, oferecendo uma tigela de uma substância pastosa verde escura e um copo de um líquido da mesma cor.



--- Coma... vai te fazer sentir melhor.

Me dei conta de que estava com muita fome... e talvez por isso, a comida pareceu mais gostosa. Indaguei a ela:

--- Onde estamos... e, quem é você?

--- Vocês estão em Kallistria... --- sua voz era doce e sedutora, mas ao mesmo firme e decidida --- ... eu sou Kallina.

--- O que... o que aconteceu ?

--- Alguns dos nossos estavam fazendo uma patrulha nas fronteiras da cidade e os avistaram.

--- Se não fosse a gente, vocês teriam virado jantar de gnoll, meu caro. --- um homem falou da porta. Cabelos negros como a noite e olhos claros, cujo azulado parecia dançar sobre a luz das velas, faziam sua pele clara ainda mais acentuada. Um sorriso convidativo e amigável era visível em seu rosto, enquanto se aproximava de Kallina, colocando a mão em seu ombro e deixando mostrar as enormes unhas escuras.



--- Como se eles não fossem virar jan...--- um terceiro homem saiu das sombras no canto do cômodo. Cabelos brancos, olhos amarelos, com uma pele mais clara que os outros companheiros e um ar de guerreiro e nobre. Trajava vestes leves de couro e suas mãos brincavam com uma faca de prata bem trabalhada. Perguntei-me se já estava lá desde quando acordei... mal prestei atenção em suas palavras, que foram interrompidas pela mulher.



--- CALADO, Gheth... --- lançou-lhe um olhar de repreensão que faria congelar o mais corajoso dos homens. Deixou transparecer um sorriso raivoso e o que me pareciam ser... presas. Congelei de pavor... engolindo seco.

Vampiros...

Sempre achei que não passassem de lendas. Por mais que existissem relatos de toda a sorte de monstros e criaturas no Extremo Norte, nunca havia ouvido falar dos Imortais. Reza a lenda que viviam de sangue, não possuiam imagem ao espelho, eram vulneráveis a luz do sol e só morriam com o coração atravessado por madeira. Engoli seco novamente e vasculhei o cômodo com os olhos em busca de algo que pudesse servir de arma. Minha ansiedade e medo deve ter sido notada pelos três Imortais, dado o que Kallina falou em seguida:

--- Seu coração disparou... se acalme. --- ela sorriu. Linda... --- Somos vampiros, mas não queremos o seu mal. Venha comigo... vamos dar uma volta. Consegue se levantar ?

Obedeci por medo. Me levou para fora do cômodo, um salão muito alto e amplo. Diversos vitrais multicoloridos e foscos que diminuiam a entrada de luz no local, mobiliado com algumas mesas, cadeiras e dezenas, ou melhor, centenas de estantes de livros, tomos e pergaminhos. Estimei algo como por volta de cem a duzentos mil manuscritos, conhecimento que faria qualquer estudioso de Eä delirar... o conhecimento da eternidade. Cruzamos todo o salão, em direção a duas enormes portas de carvalho negro que deviam pesar quatro ou cinco homens. Kallina empurrou-as sem grandes esforços, deixando a luz do sol invadir aquele santuário e me convidou a passar por elas.



Ao pé da montanha, Kallistria se estendia por quilômetros em raio, terminando em uma muralha de pedra tão alta quanto as maiores torres dos reinos ao sul. Casas de rocha negra eram agrupadas em quarteirões geometricamente planejados entrelaçados ruas pavimentadas com o mesmo material das construções. Espalhadas por elas, pilares de rocha mais clara com estátuas, representando os mais variados seres, vigiavam tudo estaticamente. Arquedutos e canais abasteciam toda a cidade com água que, por não avistar nenhum rio ou lago, supus vir de alguma fonte na montanha ou abaixo da terra. Vi também elfos, humanos, anões e outras raças que não reconheci, e indaguei à minha acompanhante:

--- Todos são... ?

--- Não, eles são Mortais. Ao total, somos 17 vampiros... todos os outros habitantes são de suas respectivas raças.

--- Mas o que fazem aqui ? --- perguntei e, por sua reação, pareceu ofender-se com a pergunta.

--- Muitos foram exilados dos reinos ao sul ... --- fez questão de pausar --- ... outros nasceram ao norte e conseguiram fugir da escravidão dos monstros. Mas a maioria nasceu aqui, bem como seus antepassados.

Ela parou de falar, observando um grupo de crianças que brincava a frente das escadarias da biblioteca.

--- Nós, vampiros, não somos aliados de nenhuma raça ao norte ou ao sul. Não nos interessamos pelas guerras e conflitos de ninguém, mas não temos piedade dos que entram em nosso território.

--- E eu e meu grupo ... ? --- perguntei, como se testasse a paciência vampírica.

--- Oferecemos abrigo e proteção a todos que precisam... --- terminou a frase sem realmente terminá-la. Como se a completasse, eu disse.

--- E em troca, os habitantes servem de alimento para vocês, certo ? --- passei a mão em meu pescoço.

--- Você não foi mordido... --- ela disse com o semblante triste, como se esperasse a minha reação --- Todos os que vivem aqui, o fazem porque querem. Se nos dão seu sangue... é por gratitude e respeito...

--- Entendo...

--- Você e seus companheiros estão livres para partir quando quiserem. Só peço que não digam a ninguém sobre nossa cidade... para a segurança de vocês. Tomarei as providências para que tenham cavalos até o entardecer. Peço também que não cheguem perto do acampamento gnoll, pois não estaremos por perto para salvar seus traseiros mortais. --- falou em um tom de zombaria, esboçando-me um sorriso.

--- Obrigado, Kallina... --- torci a cabeça para o lado, fechando os olhos --- ... obrigado, por tudo.

Senti seus dentes perfurando a pele e o sangue fluir. Fui tomado por um calor e logo depois por um prazer extremo. Minha visão turvou-se e minhas pernas fraquejaram... foi o sinal para que ela parasse. Lambeu a ferida e beijou-a, subindo para minha bochecha e então para minha boca.

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Meu pescoço ainda ardia pelo terceiro dia seguido. Seguiamos de volta a Kamigawa, para relatar os acontecimentos ao Shogun. Durante a viagem, mais rápida e mais tranquila pela presença dos cavalos, escrevia um relatório.

”... rumamos doze dias para norte, encontrando um acampamento gnoll. Fomos atacados, mas rechaçamos o ataque, roubando-lhes alguns cavalos....

Fora isso, mais nada a reportar.”





kamiko ¹ : aqueles nascidos em Kamigawa.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Essien, o primeiro Imortal

Sua visão escurecia, o ar faltava-lhe e, como reflexo, sua mente, em uma tentativa inútil de afastar a dor a que o corpo era exposto, ameaçava desmaiá-lo. A pele de suas costas tornara-se uma massa irreconhecível de sangue e carne que escorria pelas pernas, as costelas já estavam a mostra por debaixo dos músculos e seus punhos já doiam de tanto apertar as cordas que os mantinham presos. Parte de seus longos cabelos negros haviam sido arrancados, seus olhos eram não mais do que duas bolotas roxas e uma de suas pernas havia sido quebrada por um dos aldeões.

Graças ao sal, as feridas abertas não cessavam em doer nem mesmo durante os intervalos entre cada chicotada. Gritava mudo a cada nova ferimento e implorava para o término daquele espetáculo, fosse com o fim das contagens ou com sua morte... o que chegasse mais rápido.
Digo espetáculo, pois era assistido por toda a vila. Crianças, adultos e idosos, todos olhavam para o bruxo e em silêncio... três silêncios completamente diferentes. Um silêncio de ignorância dos mais jovens. Não sabiam o que acontecia ao certo, apenas tinham conhecimento de que seus pais haviam capturado um bruxo malvado... olhavam para o açoitado e imaginavam-se como cavaleiros de armaduras brilhantes punindo um inimigo. Um silêncio de orgulho e desprezo dos adultos perante o homem, como se tivessem protegido o vilarejo de um perigo e, agora, expurgassem tal atrocidade. E um silêncio que era reza, por parte dos mais velhos. Imploravam aos Deuses para nunca mais colocar um bruxo no caminho do vilarejo.

Retiraram seu corpo do palanque de madeira ainda semi-consciente... podia-se dizer que havia saído no lucro, onde muitos haviam sido punidos com a morte, ele apenas havia sofrido algumas dezenas de chibatas, cabelos arrancados e alguns ossos quebrados. Ou fora sorte, ou apenas era mais resistente. A fogueira foi acesa e o homem ardeu nas chamas. Os aldeões logo voltaram para suas casas e dormiram e sonharam até a manhã do outro dia, onde recolheram as cinzas do bruxo e a enviaram para alguma terra longínqua.

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Você acharia plausível se parasse a história por aqui, afinal, o passado está cheio de homens que foram à fogueira inocentemente, seja em comunidades bárbaras ou não... homens considerados bruxos, apenas por serem capazes de um dom que ninguém tem ou entende.

Estes... eu não me importo. Que ardam e morram...

Mas... e quando os aldeões e os bárbaros tem razão ? E quando realmente um bruxo vai a fogueira ?

Posso assegurar-lhes que as chamas não são o bastante... mas deixe-me continuar...


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Durante a madrugada, Eizi farejou o sangue de seu mestre, aproximou-se dos restos da fogueira ainda quente e carregou Essien para fora da vila, bem como o que sobrara de sua mochila, também incendiada. Totalmente coberto de cinzas, o bruxo acordou dois dias depois, levantou-se e, ignorando a dor que sentia, saboreou com prazer o gostinho de sangue em sua boca, resultado da magia que havia invocado para se proteger das chamas.

Essien era um taumaturgo, um mestre em uma arte milenar... a magia de sangue. Estava em uma daquelas jornadas por conhecimento a alguns anos... uma nobre aventura que mais havia estuprado mulheres e saqueado vilas do que aprendido algo. Era inteligente e sagaz. Versado nas muitas áreas do conhecimento, mas buscava algo que apenas a taumaturgia poderia lhe dar...

Um antigo conhecido havia lhe dito que outro mestre na magia de sangue estava pela região e, portanto, Essien seguiu ao encontro do homem, no intuito de compartilhar conhecimentos... MENTIRA... com a intenção de se apossar dos conhecimentos do homem e matá-lo. Não havia motivo para haver outros taumaturgos poderosos...

Os aldeões haviam dito que outro forasteiro havia passado pelo local a menos de uma lua rumando norte... agora tinha para onde seguir. Olhou seu reflexo em um rio que passava a alguns quilômetros da aldeia, ”Você está deplorável, meu caro Essien”. Pegou uma navalha dos restos de sua mala e nivelou os cabelos negros, deixando não mais do que um centímetro, o bastante para esconder suas cicatrizez. Limpou seu corpo das cinzas e, com alguns pedaços de pano chamuscado, improvisou uma bermuda... teria que roubar algumas roupas mais tarde. Fez sinal para Eizi e o lobo partiu pela planície em disparada. Retornou algumas horas mais tarde com um coelho ainda vivo entre os dentes. O taumaturgo estudou por um momento a criatura que esperneava assutada e, com a navalha, cortou os pontos certos para que o sangue fluísse rápido, enquanto murmurava um encanto. Bebeu da vida escarlate do animal e sentiu os ferimentos nas costas se fecharem, o osso da perna retornar ao normal. ”Novo em folha”, disse olhando para o reflexo manchado pelo sangue.



Rumou norte por cinco dias, quando encontrou uma aldeia maior que a primeira, com não mais do que 40 ou 50 construções, chutou 100 a 200 habitantes. Farejou o ar por um momento, como se sentisse o aroma de algo, esboçando um sorriso quase bobo, daqueles de criança quando ganham um presente. "Ele está aqui Eizi, consegue sentí-lo?”, afagou a cabeça do lobo, que soltou um uivo baixo de confirmação.

Esperaram anoitecer e adentraram na vila, olhos vermelhos de sangue mágico tornava a visão noturna de Essien tão boa quanto a de Eizi. Xingava os aldeões por terem ficado com suas armas, já imaginando como improvisaria em caso de combate... quem sabe não haveria necessidade. Quem sabe os dois apenas sentariam e conversariam sobre Eä, sobre as terras ao Sul, sobre sangue e sobre a taumaturgia. Quem sabe tomariam um bebida e dariam risadas... quem sabe tornariam-se grandes amigos.

”Pare de pensar asneiras...”, disse mentalmente, enquanto passavam pelas ruelas do lugar. Em um varal de uma casinha, afanou algumas roupas que lhe serviam. Um colete de couro, uma camisa e uma calça apertada. Ainda faltou-lhe as botas, que encontrou alguns metros depois, próximo da soleira de outra construção.

Aproximavam-se da praça da aldeia, uma área ampla rodeada das construções mais importantes do local --- uma taverna, uma igreja, um armazém e uma estalagem. Com um piso de pedras cinzas, não existia fonte ou mesmo um jardim no local, havia, no entanto, uma estátua do busto de um homem, possivelmente o fundador ou alguma figurona importante para os habitantes. Além disso, alguns bancos de pedra e um coreto pequenino denunciavam que a vila recebia artistas errantes de tempos em tempos. Os lampiões já haviam sido apagados e nenhuma luz era visível pelas janelas das casas... nenhuma viva alma estava presente, não fosse a figura que observava sentada em cima de um telhado próximo.

--- Procurando por mim ? --- levantou-se, revelando uma figura alta e esguia feminina delineada pelo luar.

--- Ora ora... vejo que minha noite acabou de ficar melhor. Não esperava por uma dama... --- Essein disse, sorrindo e a mulher retribuiu com sorrindo.

--- Já ouvi falar de você... Essien, o taumaturgo do Sul...

--- ... e do Leste e do Oeste e do Norte, minha cara --- interrompeu-a, fazendo um gesto com as mãos como se abrangesse os 7 ventos. --- Todos os tuamaturgos que já conheci, como posso dizer... fazem parte de mim.



--- Sou a única que ainda não caiu? --- ela saltou do telhado, ficando a não mais do que quatro metros do taumaturgo. Possuia tez muito clara, lábios carnudos, cabelos negros e olhos amarelos versados na arte de intimidar e manipular. Trajava uma capa, tão preta quanto seus cabelos, que deixava mostrar apenas parte de seu corpo, um corselete algum tom mais claro que a capa e, apesar do frio da noite, uma peça bem curta abaixo da cintura, que exibia as grossas coxas, as canelas, chegando até as botas de viagem. Por último, para combinar com o manto e as botas, calçava um par de luvas escuras e um broche vermelho próximo ao ombro direito.

--- Nah... provavelmente não --- disse, dando de ombros. --- Últimamente, a taumaturgia está se tornando uma arte banalizada... mais e mais “novos-sangues” aprendendo o ofício. Mais e mais besteiras acontecendo...

--- E o qual o seu papel nisso? --- indagou em tom de brincadeira.

--- Digamos que eu sou o controle de qualidade --- zombou, abrindo um sorriso, enquanto mexia com um dos anéis em seu dedo --- prefiro não ficar quieto enquanto vejo a decadência da nossa arte.

--- Hum... o que você quer comigo ? --- perguntou já sabendo a resposta.

--- Hoje é a noite de seu teste, mon amour--- terminou a frase correndo em direção da mulher.

Com o anel, um cilindro circular com lâminas por toda volta, fez um corte em seu dedo. Murmurou palavras em um idioma conhecido pelos dois e o sangue fluiu rápido pelo polegar, tomando a forma de uma lâmina escarlate que fincou em cheio no peito da garota. Eizi latiu desconfiado, enquanto a inimiga desfazia-se um gás perfumado.

--- Uma ilusão... estou impressionado. Há muito tempo procuro por alguém que valha o esforço... parece que finalmente encontrei --- virou-se, para encontrá-la sentada no busto da estátua --- A quem devo a honra?

--- S’hares --- ela parecia remexer algo em sua boca, como se mastigasse algo --- Lembre-se do nome.

--- Pode dei... --- Essein é interrompido quando a garota parece cuspir o que mascava. Uma pequena esfera vermelha que foi projetada em alta velocidade quase o acertou no peito, não fosse seus reflexos e a magia que melhorava sua visão. A esfera seguiu seu curso, acertou uma das construções e desfez-se em uma mancha de sangue na parede--- ... Eizi, para longe... você pagará, desgraçada !!!

Investiu contra ela, brandindo sua lâmina de sangue, um pouco maior do que uma espada longa. Fez um corte horizontal, atingindo apenas a testa da estátua, e então outro e outro corte, mas S’hares continuava desviando, ainda em cima da estátua. Cortou testa, boca, pescoço e peito, finalizando com um corte vertical que dividiu cada pedaço anterior em dois. A taumaturga com um salto, apoiou-se em suas costas e após uma pirueta aterrisou no telhado do coreto central.

Essien sorriu, enquanto uma gota de suor escorria de sua testa. Passou a outra mão pela lâmina rubra, cortanto o polegar e transmutando sangue em uma nova lâmina. Impulsionou-se e saltou em direção da inimiga, usando o peso do corpo para fincar o metal nos ombros de S’hares, fazendo um estalo alto das clavículas se quebrando e, devido ao peso, destroçando algumas telhas abaixo de seus pés. Desfez uma das lâminas e, segurando o ombro da garota, fincou o aço rubro em seu abdómen, fazendo com que cuspisse um pouco de sangue. Aproximou do rosto da garota e lambeu o filete vermelho que descia pelo queixo.

--- Sabe, antes de chegar aqui. Pensei que talvez pudéssemos sentar, conversar e beber... ao invés de nos matarmos logo de início... --- rodou a lâmina na barriga da garota, que soltou um gemido agoniado ---... nem que isso nos levasse a uma matança mais tarde. Mas, sabe, seria um início diferente do qual estou acostumado --- deu de ombros, fazendo uma expressão desinteressada.

--- Filho da puta... --- cuspiu vermelho no rosto de Essien.

--- Quanta doçura... agora me diga --- fez uma pausa, apreciando a dor da taumaturga e limpando a face --- o que sabe sobre a imortalidade?

--- Nada... nada que possa... arrancar de mim !

--- Bem... eu posso arrancar-lhe a cabeça, que tal ? --- indagou, após alguns segundos, como se já esperasse a resposta. Mas foi surpreendido por um sorriso vindo do outro lado. Um sorriso de zombaria e felicidade.

As mãos da garota se ergueram, tocando o antebraço de Essien, bem onde a lâmina escarlate terminava. Fez força, puxando o corpo para longe e o braço do homem na direção oposta, até que o sangue desprendeu-se da mão e a lâmina se desfez em líquido, dando espaço para um buraco que atravessava o corpo feminino. Delicadamente ela afastou a mão que segurava seu ombro e deu alguns passos para trás. Os ombros achatados voltaram a forma original e a ferida no abdómen cicatrizou-se, enquanto ela murmurava um encanto.

--- Por que quer trapacear a morte, Essien ? --- questionou, deliciando-se da surpresa e espanto do homem. O luar tornava suas feições ainda mais provocantes e sensuais.

--- Hunf.... --- Essien parou, sem saber o que dizer. Não apenas espantado com o poder da mulher, mas por perceber que não havia um real motivo por querer a imortalidade. A desejava por ser o topo da excelência taumaturga. Quem a dominasse seria o melhor... o mais poderoso. E, se havia algo como “poder demais”, ele ainda não havia descoberto. --- ... Sei lá.

--- És um tolo e sem objetivo... e morrerás por isso ! --- gritou investindo contra ele.

Acertou-lhe um golpe acima do abdómen, que o fez soltar todo o ar dos pulmões e curvar-se, seguindo de uma sequência de joelhadas, cotoveladas e chutes nas mais diversas partes do corpo. Ele defendeu-se como podia, mas não foi páreo para a rapidez da garota. Após um chute na virilha, ela o agarrou e arremessou para o chão da praça, pulando do coreto e caindo com os dois pés em seu tórax. Ouviu-se um estalo de algumas costelas se quebrando.

Ainda em cima de Essien, a garota segurou o colarinho de sua camisa e deu-lhe alguns socos até que sua boca sangrasse. Pegou uma pequena faca que pousava presa à bota e cortou-lhe camisa e peito, passando os dedos no sangue do ferimento. Soltou uma gargalhada doentia em meio às palavras arcanas e uma manopla rubra tomou forma sobre o braço feminino.

Quebrou-lhe o nariz com mais um murro e, agarrada a veste de Essien, o arrastou pelo chão de pedra por alguns metros, arremesando-o na parede a taverna, do outro lado da praça. Caminhou calmamente até os escombros, enquanto o taumaturgo, ainda nauseado, tentava recobrar os sentidos. S’hares agaixou-se ao seu lado, murmurando:

--- Algum dia... alguém irá me superar. Mas não será hoje e não será você, Essien...

Não faltou vontade para levantar-se e ir atrás da mulher, mas sua força havia se esvaído após os ataques que recebera. Ficou apenas observando, enquanto a figura feminina desaparecia de seu campo de visão... até que seus olhos fecharam e ele desmaiou.

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Acordou com o crepitar de uma fogueira próxima e Eizi ao seu lado. Levantou muito rápido e sentiu as costelas repuxarem, soltou um xingamento de dor.



--- Até que enfim acordou ! --- um homem levantou-se próximo a fogueira. Travaja um tipo de sobretudo de couro, cinza claro, de mangas cortadas, uma calça azulada e botas de cano alto bastante sujas, sinal de alguém acostumado a andar por trilhas de terra. Cabelos longos azulados, feições retas e duras e um olhar quase lupino. --- Você teve sorte de eu encontrar seu lobo pela estrada... ele te arrastava para fora do vilarejo. Qual o seu nome ?

--- Essien... --- o taumaturgo disse, olhando para o curativo que o homem havia feito. Levantou-se como pode, indo se sentar próximo a fogueira. --- ... e você ?

--- Miwalk... o que fazias no vilarejo ? E por que estava todo quebrado ?

--- Tive um desentendimento com alguns aldeões... --- mentiu.

--- Sabe, você é um péssimo mentiroso... você estava moribundo quando te encontrei. --- disse, rindo da mentira do taumaturgo.

--- Sabe como dizem... o que não nos mata, nos fortalece --- desconversou, sorrindo --- Tem algo para comer ?

O homem entregou-lhe um pedaço de carne assada e passaram a noite conversando. Miwalk era um geomante, um tipo de elementalista que retira poder das formas presentes da natureza, como rios, montanhas, florestas ou planícies. Além disso, era um estudioso da astrologia e sabia bastante sobre o céu e os astros. Carregava uma bolsa pequena, de não mais do que alguns palmos, que a chamou de “biblioteca”... era mágica e seu interior era muito mais espaçoso do que uma bolsa normal. Retirou algunas dezenas de livros, resumindo-os e comentando-os oralmente. Essien se interessou por um em particular, um livro de umas 100 a 200 páginas, capa de couro negro e com inscrições quase ilegíveis na fronte.

--- É um livro de lendas infantis... conta sobre alguns Deuses de Eä e o Cosmo. --- Miwalk disse, enquanto o taumaturgo folheava o objeto. Deteve-se em um capítulo em especial, “Um Deus de Barganha”, uma cantiga que falava de uma entidade negociadora.

--- Posso ficar com ele ?

--- Sem problemas, não me fará falta. --- disse guardando os livros de volta na bolsa mágica.

Conversaram por mais algumas horas e foram dormir. No dia seguinte, Essien despediu-se de seu amigo e seguiu seu rumo, junto com Eizi.

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”Um Deus de Barganha

Mercador, barganhador,
Matreiro latoeiro,
Ele não quer o seu dinheiro.
Gosta mesmo é da sua dor.

De fogo e sangue você vai precisar,
Se ao Deus das Trocas quiser chamar.
Mas, se acaso ele surgir,
Não haverá como fugir.

Um pedido você terá,
Mas, em troca, muito terá que dar.”


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--- Fogo e sangue, é? --- Essien repetiu, ateando fogo a uma bacia cheia do líquido vermelho. Gritou --- Deus das Trocas ! Apareça !

Estava ao sopé de uma montanha, a algumas centenas de quilômetros da fronteira com as terras do Sul. As poucas árvores da região pareceram se agitar mesmo sem nenhum vento ou brisa.

A figura esguía e esbelta surgiu sentado em uma rocha. Olhos frios e calculistas que analisaram Essein de cima a baixo. Olhos que adentraram na mente do mortal e a vasculharam completamente. O taumaturgo engoliu seco e, inconscientemente, tremeu ante a presença divina.

--- O que queres comigo, mortal ? --- sua voz era forte e poderosa.

--- Quero entrar em débito contigo, Deus. Desejo a ...

--- Seu débito começou quando me invocou, tolo! --- interrompeu-o com uma expressão séria --- Agora não me faça perder meu tempo, o que desejas ?

--- Imortalidade... --- falou sem pensar duas vezes. Os olhos finos do Deus o olharam e um sorriso malicioso brotou em sua face.

--- E por que a deseja? --- a pergunta de sempre. Mas dessa vez, havia resposta.

--- Quero não ser escravo do tempo. Quero trapacear a morte e levá-la aos meus inimigos.

O Deus o olhou mais uma última vez com interesse, e indagou:

--- E o que me darás em troca ?

--- O que quiser será seu... apenas quero que realize meu desejo.

--- Não serás mais escravo do tempo, mortal. Serás prisioneiro do sangue e inimigo da luz... bem como aqueles que nascerem de ti. Nossa troca está feita... que todos lhe chamem de Imortal.



Essien, o primeiro Imortal, sorriu...

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O Poder do Pensamento

Tudo estava pronto. O cenário já estava a posto, os atores se preparavam e as cortinas logo abririam-se. O espetáculo estava prestes a começar.


Os deuses se distanciaram, deleitando-se de orgulho e satisfação. Observaram a obra-prima pelo tempo suficiente de um suspiro. Não podiam esperar mais. A ansiedade, resquício mortal, tomava conta dos presentes, agitados por assistir a obra tomar seu próprio rumo. Todos consentiram e, com um estalar de dedos, Omnitheron fez com que a entropia caminhasse no sentido esperado.

A partir disso, a própria Criação, como havia feito com a escuridão após o nascimento das estrelas, tratou de ordenar o que restava. De sonhos, estabeleceu o Éter, o reino planar das idéias e pensamentos que une todas as criaturas. Do comportamento caótico dos átomos, oficializou a gravidade, o empuxo e todas as outras leis naturais. Da energia vital de todos os seres vivos, formou-se o plano elemental do Fogo. Das profundezas do planeta, o plano do elemento Terra, da fluidez e mutabilidade de Quen’are, deu forma ao plano da Água. Do bater de asas dos dragões, o reino do Ar, da energia emanada por todas as estrelas, o plano da Luz e de uma frase de Nerul que ainda pairava na imensidão, a morada das Sombras.

Porém ainda havia uma peça faltando em tudo aquilo. O fio fundamental que interligaria a Existência como um todo. A capacidade de manipular a Criação. A centelha de poder divino capaz de torcer e moldar tudo ante a vontade.

Magia.

Não havia, entretanto, nenhum deus com tamanho poder capaz de fornecer a dádiva da magia à Criação inteira. Portanto, depararam-se com o paradoxo. Não é possível o surgimento da arte arcana sem um ser que assumisse como Patrono da Magia. Todavia, era inconcebível a idéia de um Deus da Magia sem a existência da mesma no plano.

A idéia da necessidade de um Patrono permaneceu no Éter por um longo tempo. O suficiente para que, como um recém-nascido, engatinhasse até adquirir firmeza nas pernas. Andou, até aprender a correr. Correu até conseguir saltar. E voou quando saltar já não era o bastante. Adquiriu asas e fugiu do plano etéreo, forçando sua passagem para o plano material. Ao fazê-lo, formou o Primeiro Portão, a barreira que separa a realidade dos sonhos... Eä do Éter.

A idéia, já portadora de um poder digno de uma divindade, rumou para onde os outros Deuses estavam. Curiosos, todos analisavam-na, enquanto uma frase permeava as gargantas presentes... “O que é você?”

“Sou cria do pensamento, dos sonhos e da imaginação. Sou Aquele-que-a-tudo-pode, sou aquela que molda o mundo sob a minha vontade. Sou a pedra angular, o fio essencial, aquilo que falta para completar a vossa obra”, a voz era projetada na mente dos outros deuses. Era serena como a mais calma das manhãs de primavera, mas cheia de fúria como as nevascas de inverno.

“Eu sou a magia e a ela eu pertenço. Sou a Divindade da Magia e ponho-me à vontade da Criação e de seus habitantes”. A entidade, antes uma pequena esfera desfocada e tremulante, tomou a forma de um humanóide. Emanava idéias e pensamentos em forma de luz azulada. A figura deu as costas aos outros Deuses, encarando o Plano de Eä. Postou um dos joelhos no chão e abaixou a cabeça, em respeito à Criação que dera vida a ela. Segundos depois, se despedindo dos outros deuses, desvaneceu-se com uma leve brisa que passava.

Com a mesma rapidez que sumira, passeou por todos os cantos da Criação. Das leis naturais, dobrou-as criando suas opostas. Dos reinos elementais, moldou os Portões que restavam. E, de sua própria energia, explodiu em chamas que cairam por toda a Criação.

Todos os seres vivos sentiram algo completar-lhes o peito. Sentiram a centelha arder em seus corações e, por um momento, acharam-se capazes de proezas inimagináveis. Apenas um nome permeou a mente de todos. Um nome de impossível pronúncia ou escrita, que as mentes traduziram da melhor forma possível em dois ideogramas e um som.

“જાદુ”

Com o som, descobriram o modo de chamá-lo. Ishgar.

Com os ideogramas, vieram pensamentos e destes sensações. Ao mentalizarem “જા” os habitantes de Eä sentiram Poder, em sua forma mais essencial e não lapidada, como um diamante bruto em meio ao carvão. “દુ” era um pensamento que dizia a respeito de si mesmo, o complexo conceito do Pensar. Pela simples associação, os seres de Eä conheciam o poder do pensamento... a magia.


As peças estavam completas, o quebra-cabeça montado, o menestrel do Tempo já iniciara a música e o espetáculo podia finalmente começar...

A Vida, A Morte e Eä

O mundo estava quase pronto, existiam montanhas, lagos, rios, mas nenhuma vida o habitava. Ehlonna impacientemente queria transformar seus sonhos em realidade, as árvores, os animais, a beleza das flores, a incontável diversidade que habitava seu coração. Mas ela não conseguia trazer à vida todas essas coisas, e então se recolhera a um pequeno plano que criara para si. 

-- Por que não consigo? Por que não posso trazer os meus filhos para o mundo? O que impede a minha força criadora de agir? 

 

A bela elfa com lágrimas nos olhos se sentou em um canto qualquer, abraçando seus joelhos delicados. Então de seu lamento veio o conhecimento. Nesse lugar cada deus só poderia ter uma atribuição, o deus do tempo já mencionara antes. 

‘-- Que mau humor senhor dos mortos que andam. Ou deveria chamá-lo apenas de senhor dos mortos? 

Ele sabia que Nerul era muito mais do que o deus dos mortos, existiam muitos subtítulos para todos os deuses que vieram a essa Criação, mas a muito tempo que Nerul não falava em nada mais do que a morte, e Pelor só de seus belos sóis, e ela mesma só da natureza. Agora Ehlona entendia, ela era a deusa da natureza, nada mais, nada menos, não poderia dar vida, apenas cuidar dela depois que se tornasse realidade. 

Todos os deuses haviam tomado uma parte de sua personalidade e transformado-a na sua única grandiosa capacidade, e para tal sacrificaram todo o resto. 

-- Vejo que choras, minha doce flor! – O sorriso não deixou os lábios de Omnitheron, ultimamente era a única expressão a ser vista. – Claro, claro! Você chora, pois não tem filhas e filhos para cuidar, você deve estar com a “síndrome do ninho abandonado”. – uma leve pausa – Vamos, não me olhe com esse olhar raivoso, ó grande mãe da natureza. Tenho a solução para suas aflições. – Uma linda mulher entrou no cômodo, a primeira vista tinha uma estufada barriga, algo que muitos julgariam ser gordura excessiva. Mas após olhar suas coxas, seus antebraços e seu tronco veriam claramente que ela estava grávida. 

-- Não traga suas concubinas para o meu plano. – um olhar praticamente perfura a testa de Omnitheron, que sorriu com a resposta dada pela mulher que acabara de entrar. 

 

-- Se sou concubina de alguém, sou sua. – o olhar calmo e pacífico de Livynien a deixava mais linda, uma mãe prestes a dar a luz possui muitos encantos. 

-- Não sejas tola! Nunca te vi! – a expressão de desprezo dominou a face da deusa – E mesmo se a conhecesse não chegaria perto de você. 

-- Calma minha cara. – O deus se divertia, mas segurava o riso debochado aprisionado dentro de seu cérebro. – Você realmente a engravidou, mas não foi da maneira convencional. – A pausa dramática rendeu frutos, Ehlonna se mostrou completamente perdida e paralisada pela descoberta.—As suas idéias a tornaram mãe e tais idéias vão florescer hoje. 

-- COMO? NÃO SEI DO QUE ESTÁ FALANDO! DE ONDE TIROU TAMANHA ASNEIRA? DE ONDE VEM A SUA LOUCURA?—o Deus do Tempo não se segurou mais e começou a rir desesperadamente. 

- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA 

Caio ao chão se contorcendo em sua felicidade. Só após um tempo se recompôs, levantou e voltou a conversar. 

-- Essa é Livynien, a nossa Deusa da Vida, só ela pode dar vida a nossas idéias. – o maroto sorriso avisava que ainda havia mais por vir.—Ela é a ÚNICA nesse lugar que pode dar vida, se acostume com a Idéia. É exatamente como você imagina, cada deus só pode ter uma atribuição, dessa forma, eu sou APENAS o deus do TEMPO, você APENAS a deusa da NATUREZA, assim como Pelor do SOL e Nerul da MORTE. – O deus falava com muita veemência deixando claro que já sabia disso antes de virem para essa dimensão, a diversão nunca acabava. 

Ehlona ainda estava juntando os fragmentos em sua mente, ponderando a quanto tempo não pensava em mais nada além de suas plantas e animais. 

-- Mas como poderíamos manipular o mundo? Eu não poderia apenas ‘subjugar’ a NATUREZA? 

-- Cada coisa ao seu tempo, primeiramente temos que arranjar um bom lugar para um esplendoroso parto! Afinal, nada ganha vida sem um sacrifício de algo. 

Os deuses se reuniram no plano da deusa da vida, o parto não foi o que os humanos ou seres vivos chamariam de “parto” e obviamente não poderia ser. Não nos convém descrevê-lo, mas no fim Eä floresceu em verde. 

 

-- Veja mãe da Natureza! Os seus filhos ocuparam o mundo que todos se ocuparam em fazer! – Livynien sorriou junto com a outra deusa. 

-- A felicidade é grande demais para ficar apenas para mim. – Ehlonna cantou. Cantou como milhares de animais que agora habitavam Eä, nenhum Deus jamais teve tantas vozes ao mesmo tempo, e a melodia tomou a Criação e muitos outros planetas também receberam os filhos de Ehlonna. 

No fim da canção Livynien estava novamente grávida e todos os deuses mais uma vez comemoraram. 

Cada um veio ao seu tempo, primeiro os Elfos acordaram sobre um cobertor de estrelas destinados a amar a noite. O deus que sonhara com a sua vinda muito ficou feliz, e comemorou o nascimento de seus filhos. Altos e esbeltos, de grande longevidade, demonstraram grande inteligência e capacidade de aprender, poucos foram, dos primeiros Elfos, que não fizeram grandes feitos, também demonstraram amor à natureza, quase tão grande quanto Ehlonna. 

Os Anões nasceram sem ver o sol ou as estrelas, o seu criador era arrogante demais para deixar Pelor roubar seus filhos. Pernas fortes e resistentes, uma pele que em muitos parecia mais com uma couraça de pedra, apenas amaciada para permitir o amor entre os da mesma raça. 

-- Eles viverão em cavernas, até que algo os chame para viver em outro lugar! Mas nunca viverão sobre o sol, não sem se sentirem incompletos. Um teto de pedra sempre lhes cobrirá a cabeça! -- Até nos dias de hoje é difícil achar um Anão que não viva com uma grande quantidade de pedra por sobre suas cabeças. Viveram centenas de anos antes de achar a saída para o mundo de céu, sol e estrelas, em seus escritos alguns dizem ter sido o fim dos tempos áureos da raça, o dia que o céu foi achado é conhecido entre muitos da raça como um dia de pesar. 

 

Existia um deus que nunca se pronunciava. O olhar maldoso vigiava a obra dos outros, e às copiava, corrompendo-as. Poucas idéias esse deus tinha, e todas eram para destruir algo que fora construído por outros. A água virou gelo e lodo, o fogo lava destrutiva, as belas colinas em gigantescas montanhas instransponíveis, as árvores pacíficas de Ehlonna se tornaram carnívoras, e seus animais em monstros, assim como Elfos viraram Orcs e muitas outras aberrações nasceram da imaginação desse deus. Seu nome era Ith e a tudo ele profanou. 

 

Porém como vida só poderia vir de Livynien, dela vieram os monstros e os seres para aterrorizar os filhos dos outros deuses. Depois a Deusa muito adoeceu. 

-- Vemos que a Deusa da Vida está quase sem a própria vida! – Omnitheron se divertia com as ironias e inconveniências do próprio tempo. – Creio que Ith matará a nossa amada deusa antes mesmo de podermos terminar a nossa laboriosa obra! 

-- Cale-se. – Ehlonna estava ao lado da deusa adoentada, que parecia estar realmente perdendo sua vida. Podiam ver seus ossos, faltava-lhe carne e a cor fugia-lhe. – Em vez de brincar, ajude-a. 

-- Não minha amiga, deixe que fale, não existe mentiras nas palavras do tempo. – a própria voz da deusa era fraca. – Mas não vou deixar esse universo antes que os meus últimos filhos venham ao mundo. 

Os humanos não estavam completamente prontos, a “gestação” da deusa demorara mais do que o de costume e a mãe dos homens sofria ao lado da deusa adoecida. Ninguém notou, no entanto os Deuses dos Anões, Elfos e Humanos também estavam doentes, em alguns pontos suas peles escureciam e grandes manchas negras surgiam. 

Durante um bom tempo todos tiveram a certeza que a morte de Livynien era iminente, mas muitas coisas ainda viriam a ser geradas antes da deusa desistir de sua vida. Finalmente os humanos nasceram, a ambição e a criatividade se mostraram suas características mais fortes. Mesmo com seu pouco tempo de vida, todos sonhavam com a grandeza e auto-superação. Levantaram castelos, muralhas e muitas grandes edificações, criaram sistemas de governos, a filosofia, a sociologia e os estudos da natureza. O seu tempo era curto e todos queriam deixar uma marca, mesmo se depois fossem esquecidos. 

Logo após nasceram os Dragões, seres de incomparável inteligência e poder, também possuidores de uma grande afeição por metais e pedras preciosas. Um deus de aparência real, adornado por jóias, portando uma bela espada em sua cintura, alto e forte, parecendo um humano com feições reptilianas, falou aos outros deuses de sua preocupação. 

-- Meus caros, meus filhos inteligentes e poderosos não viverão muito bem com os seus frágeis e tolos. 

 

-- Que isso não seja um problema, meu caro! – o Deus do Tempo se divertia com o orgulhoso deus. – Vamos fazer um lugar para prendê-los, até que os outros filhos possam enfrentá-los! E você então verá que humanos, elfos e anões não são tão fracos quanto você desejaria. 

-- Não fale asneiras! – o Deus dos Dragões adorava uma aposta – Então veremos quem irá ser o dono desse planeta, os meus filhos ou os fracos e tolos que vocês criaram! –um deus se esgueirou para a conversa. 

-- Vejo que o senhor do tempo quer uma aposta? Faremos todos então uma! – um sorriso estava camuflado nos lábios de Lucius, o Deus das Trocas. – O Deus que tiver o maior número de seguidores terá o direito de reformular o mundo, ao seu gosto, claro. 

-- Vejo que nosso amigo de chapéu sempre está no lugar certo para fazer os seus acordos e trocas. – O estranho senso de humor de Omnitheron quase sumiu. – Não me importaria de fazer tal acordo, mas eu estou fadado a perder, afinal o tempo é amado só pelos velhos perto de sua morte. 

-- Eu entrarei nessa aposta também. – o deus dos anões rapidamente interfere – meus filhos dominarão o mundo por suas entranhas de pedra e aço! 

-- Não ficarei fora dessa. Os humanos não se curvarão para dragões ou anões, a sua incrível ambição os guiará mais longe do que o poder de seus filhos. – disse a deusa matriarca dos humanos 

 

-- Não sejas tola, os elfos mostrarão a beleza de suas obras e a magnificência de suas escolhas perto da mortalidade de seus filhos. – o deus élfico rapidamente interveio. 

 

-- Calma , calma. Meus companheiros deuses e deusas, todos podem entrar na aposta, afinal todos queremos o máximo de nossos filhos. – sorrindo e tocando a aba de seu chapéu o deus dos acordos fechou o acordo. – Pronto. Não importa quem vencer, ele vai receber o poder de mudar o mundo, e todos deverão ajudá-lo. 

Uma grande ilha foi criada, e todos os dragões aprisionados dentro dela para que quando os outros filhos estivessem prontos, eles fossem liberados. A sua forma peculiar foi decidida pelo pai dos dragões que a queria como uma demonstração eterna de seu poder. Uma grande cabeça de dragão habitará para sempre o oceano. 

Com o passar do tempo as manchas na pele dos deuses ficaram maiores, e todos se sentiam fracos. A praga pegara quase todos. Pelor, Nerull, Omnitheron, Ehlona, Morgoth, Quen’are e Lucius eram os únicos deuses que não adoeceram, a força não os abandonara, mas não podiam fazer nada pelos outros. 

-- Livynien, o que posso fazer? – Ehlona ficava praticamente todo o seu tempo do lado da deusa da vida. 

-- Sorria minha amiga, a vida sem um sorriso é fútil e inútil. – o sorriso fraco e sem brilho ainda habitava os lábios da fragilizada deusa. 

-- Talvez alguma das minhas plantas poderia lhe ajudar! – o desespero pairava em seus olhos. 

-- Não sejas tola, eu dei vida a elas. Não poderiam me salvar de mim mesma. 

Um deus pode morrer, mas sua morte não é tão simples quanto a dos mortais. Tristemente os deuses são esquecidos, apagados das memórias de seus seguidores, que simplesmente irão acordar e nunca mais se lembrar de seus patronos tão amados, então sua fé os guia para algum outro lugar. 

Muitos anões se perderam quando seu amado pai morreu, dezenas de paladinos e sacerdotes esqueceram quem foram, em uma bela manhã durante o ciclo do sol verde do mundo. A dimensão do deus sucumbiu, sua energia foi dispersa no espaço, nada sobrou para contar a sua história, ninguém mais sabe o seu nome, assim como não sabem os nomes de todos os outros deuses que adoeceram e morreram dessa mesma doença. No fim, todos voltaram ao pó. 

-- Creio que mais um se foi. – nesses tempos difíceis até mesmo Omnitheron perdera seu humor. – Já não lembro o nome dele, uma pena. – os deuses esqueceram o nome dos seus companheiros assim como os seus fieis perderam a fé e a certeza que antes tinham. 

-- Não fique com essa cara, sorria meu amigo. – Livynien ainda deitada em uma cama sobrevivia bravamente à doença. 

-- Creio que até meu senso de humor se foi. Se perdeu junto com as minhas memórias. – um olhar triste dominava a expressão do deus que sentado ao lado da cama simplesmente deixava o tempo fluir. 

-- Já lhe disse Omni, siga o seu caminho e saia desse quarto amaldiçoado. Não precisamos que mais um deus caia para essa estranha doença. – Livynien demonstrava um carinho de mãe em relação aos outros deuses, que se perdiam em desespero. O esquecimento era o maior medo de todos. Sua compaixão pelo deus era demonstrada por um leve cafuné em seus cabelos, que um dia já foram negros e agora eram quase brancos, um cinza triste e melancólico. 

-- Fique feliz Livynien, a VIDA nunca morrerá. Ela existirá enquanto existir a morte, ela é interminável. 

 

Todos os seres vivos da criação gostariam que o Deus do Tempo estivesse certo. Que a Deusa sobrevivesse, contudo até ele pode se enganar. Livynien morreu, mas seu corpo não virou cinzas de imediato, durante séculos a Vida se esvaiu de seu corpo imóvel, que perdia pedaços conforme, sem piedade, o tempo passava, dando chance de existir nova vida no mundo.