E não só Gary, mas grande parte das crianças da cidade também deveria estar acordando àquele horário. Hora em que o primeiro raio de sol invadia as muralhas de Kallistria e travava uma luta que se estenderia por algumas horas contra a fina camada de neblina sobre as ruas de pedras.
Período também que ocorria a troca de turno da guarda pela cidade. Jared fazia parte das Presas da Noite --- como eram chamados os que passavam a noite em claro vigiando a muralha --- e, sedento por sua cama e um prato quente de comida, cruzava Drack’uhla em direção a Gavony, dois dos dez bairros que compunham Kallistria.
Eram Drack’uhla, Sangir, Gavony, Martirya, Katedra, Firenzia, Balfanor, Nosfer, Venescia e Transylvännia.
Desde criança, Drack’uhla provocava calafrios em Jared. Os habitantes daquela província eram reclusos e pouco amistosos, sempre olhando torto para o jovem oficial. Todos com exceção de Linda. Linda era doce e pura, uma mácula branca naquele antro negro e recluso, uma rosa em um arbusto de Pétalas Negras. E, todo dia, próximo daquele horário, a garota despedia-se do filho.
--- Preste atenção na aula, Gary. Sente na frente e escute tudo o que a professora disser! --- os conselhos de toda a manhã. O garoto resmungou algo e saiu correndo em direção da escola.
--- Ei, Gary, não está esquecendo de algo ? --- a voz conhecida do soldado freiou as pernas do menino, que voltou e deu um beijo no rosto da mãe --- Assim está melhor!
--- Tchau mãe, falou Jared!
--- Té mais... --- o soldado e a mulher acenaram para o garoto e ficaram por um tempo a observá-lo partir. Foi Linda que quebrou o silêncio.
--- Bem, se não é um patrulheiro cheio de olheiras. Não tem durmido direto, homenzinho?
--- Hum... digamos que alguém tem ocupado meus pensamentos.
--- Bem, ai temos uma garota de sorte! --- ela sorri, como se não soubesse do que o soldado falava --- O deixarei descansar, Jared, hoje é o meu dia do recolhimento e tenho que me preparar.
--- Com certeza, minha senhora. Seguirei meu caminho, tenha um bom dia.
O caminho até Gavony passava por Firenzia, o bairro boêmio de Kallistria. Alguns bêbados ainda saiam das tavernas, enquanto homens cruzavam a província rumando para seus trabalhos. De uma delegacia próxima, dois soldados transportavam um brutamontes algemado, provavelmente, preso por alguma briga de bar ou por roubar alguém.
Jared examinou o homem, calculando qual seria sua punição. Em Kallistria, as penas, além de períodos de encarceramento, continham doações de sangue que iam de um décimo de litro à algumas dezenas, divididas para que o culpado não morresse no processo. Imaginava que o homem não doaria mais do que meio litro de sangue, se não estivesse bêbado. Sangue dopado, como chamavam o líquido rubro com grande quantidade de álcool, só servia para festas e coquetéis entre a nobreza da cidade. Para a alimentação, era preciso que estivesse puro.
Bateu os olhos no relógio da torre e apertou o passo, cortando algumas ruelas e chegando à Gavony em pouco tempo. A transição de um distrito para outro era mais do que notável. O cheiro de cevada, álcool e vômito era substituído pelo aroma das flores e o perfume de pães e tortas recém-assadas colocadas nas janelas a fim de esfriar, além de atrair os clientes matinais.
Jared apalpou os bolsos, em busca de alguma moeda, mas a figura que vinha em sua direção chamou sua atenção.
--- Patrulheiro! --- o vampiro acenou com a cabeça ao passer por Jared. O soldado sentiu o Selo lhe percorrer todo o corpo, vibrando e arrepiando-o. Ao mesmo tempo de dor e prazer, além da vontade repentina de seguir o Imortal.
A maldição do Selo era uma magia taumaturga poderosa conjurada em todos os soldados que eram iniciados na Presas da Noite. Obrigados a beber o sangue de algum dos Imortais, os patrulheiros ainda mantinham sua conciência, mas, à menor vontade do vampiro cujo sangue foi bebido podiam ser controlados como marionetes.
Jared só teve tempo de fazer uma pequena continência ao Imortal e permaneceu parado por alguns segundos recobrando os sentidos. Perguntava-se o que teria feito Cervantes ter que ir até Gavony. Responsável por toda a milícia da cidade, o vampiro só saia da sede da guarda quando algo realmente ruim acontecia. Algo relacionado aos próprios vampiros. Jared parou dois homens vinham da mesma direção que o imortal:
--- O que houve? --- um dos homens pareceu nervoso, e com razão. Em Kallistria, mortais não se envolviam em assuntos de imortais. Só houve resposta, pois a pergunta vinha de um patrulheiro.
--- Disseram que um investigador da milícia foi morto --- o homem disse baixinho.
--- Pelos deuses... já é o sexto. Quem quer que tenha feito isso está bem encrencado --- o segundo homem retirou as palavras da boca de Jared.
--- É verdade --- o primeiro concordou. ---- Ouvi dizer que um grupo de aventureiros está ajudando a milícia.
--- Ainda não sabem quem é o culpado ?
Os dois menearam a cabeça negativamente e se despediram, tomando uma ruela estreita a alguns metros. A curiosidade e a presença de seu Mestre haviam tirado todo o sono do guarda, que viu-se movendo em direção ao ocorrido, uma ruela escondida próxima ao principal mercado de Gavony.
A área estava cercada e Jared só pode observar à distância o espetáculo bizarro. As paredes das duas construções que cercavam a pequena rua estavam pintadas de um vermelho tão vivo quanto o líquido que corre pelo meu ou o seu braço. A cena causava arrepio até mesmo no já calejado patrulheiro e, junto com o sangue, pedaços de carne pendiam presos nas mais diversas direções. O que quer que tivesse causado aquilo, era muito poderoso.
As notícias vieram nos dias seguintes. O Conselho comunicou à população suas descobertas: Gheth, um dos vampiros mais poderosos de Eä, fugira da cidade, deixando em seus rastros sete mortes, mais de dez mulheres desaparecidas, uma cria semi-consciente e assuntos inacabados com os outros membros do Conselho.
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--- Fui claro, soldados ? --- Cervantes bradou ao fim do discurso --- Vocês tem permissão para matar quaisquer Imortais fora do perímetro da cidade. Tragam Gheth vivo ou morto!
Jared engolia seco, hipnotizado, como os outros sete patrulheiros ao seu lado, as palavras do Imortal rondavam em sua mente.
--- Vocês são as melhores Presas, os melhores soldados... vocês são kallistrians! O objeto que tem em mãos representa a transfiguração, a transformação. De hoje em diante, vocês perdem as suas identidades...
Cervantes tomou um cálice da mesa próxima e puxou a adaga de seu cinto. A lâmina passeou pelo seu pulso, comendo carne e bebendo sangue. O filete rubro jorrou para o recipiente prateado e, quando o Imortal achou que tinha o suficiente, lambeu o pulso e o corte cicatrizou-se. O cálice foi passada para cada um dos guerreiros que se deliciaram do néctar doce e pastoso.
--- De hoje em diante, vocês serão...
Os soldados vestiram o objeto que traziam em mãos. A placa de prata do formato do rosto possuía duas pequenas aberturas para os olhos, acima do traço horizontal vermelho que cruzava de uma ponta a outra e formava um macabro sorriso. As duas presas a mostra.
--- ... a Máscara!